Categorias
Música

Wounds of change.

Texto escrito para o site. Abril de 2023.

No final de agosto de 1991, Stephen Shein, dono de um bar em Dallas, soube que uma banda do noroeste do país estava em turnê pela região. Muita gente falando bem da banda, um show muito bom… Ele nunca tinha ouvido falar dos caras, mas muita gente já comentava sobre eles. Vinda de Seattle, a banda Nirvana tinha uma base de fãs crescente, tinha um disco independente lançado e acabara de gravar um segundo disco por uma grande gravadora, que estava prestes a ser lançado. Shein não pensou muito e contratou a banda para tocar em seu bar, um lugar chamado  Trees in Deep Ellum, que tinha por lotação máxima mil pessoas. Nada mau.

Acontece que no dia 24 de setembro, é lançado o disco Nevermind. Simplesmente o disco que mudou a música pop. Empurrado pelo clipe de Smells Like Teen Spirit na MTV, Nevermind vendeu mais de 50 mil cópias em duas semanas. Um número impensável para uma banda de rock alternativo. Para quem nunca tinha ouvido falar do Nirvana dias antes do lançamento de Nevermind, agora ouvia o nome da banda em toda parte. Shein havia contratado o Nirvana para tocar em seu bar no dia 17 de outubro de 1991. Duas semanas antes do show, com Nevermind já no topo das paradas, o show da banda no Trees in Deep Ellum já estava com os ingressos esgotados. Ia ser lotação máxima.

Na noite do show, uma multidão apareceu na frente do bar. Mais de cinco mil pessoas, segundo a polícia, que teve que aparecer para dispersar o pessoal que tentava entrar no show. Dentro do bar, mal dava pra se mexer, de tanta gente. Na frente do palco, apenas um homem fazia a segurança do lugar. Um grandalhão chamado Turner Van Blarcum, que sempre fazia uns freelas por lá. Sua função era simplesmente controlar a garotada que gostava de subir no palco pra fazer stage dive. Por volta de dez da noite começa o show. A banda estava afiadíssima, empolgante, barulhenta. Havia uma energia forte no lugar.

Passam aproximadamente 40 minutos e Novoselic ataca no baixo o riff da introdução de Love Buzz. Era uma das músicas que Kurt Cobain mais gostava de tocar nos shows, ele realmente se divertia. Naquela noite, a empolgação da música, durante o solo de guitarra, fez com que ele repetisse o que fazia com frequência. Pulou em cima do público, e ali ficou, deitado curtindo o crowd surfing. Van Blarcum, o segurança com nome de general nazista, ao perceber que Cobain era carregado cada vez para mais longe do palco, não pensou duas vezes. O segurou pela perna e o puxou de volta para o palco. Talvez por reflexo, talvez por querer continuar ali, nas mãos do povo, Kurt sapecou sua Fender Jazzmaster na testa do segurança. Falando assim, parece que a coisa durou um tempão, mas foi questão de segundos. E o caos se instaurou.

Aí sim Van Blarcum puxou Kurt de volta, puto da vida e com a testa sangrando. Assim que aterrissou no palco, o segurança deu um soco que derrubou o franzino Kurt Cobain no ato. No chão, Kurt ainda levou um chute do segurança, até que Dave Grohl, como um gato, pulou sobre o kit da bateria para apartar a briga, pois Novoselic já partia pra cima do segurança. A plateia estava enfurecida e vaiava enquanto a banda saía do palco. Temendo que seu bar fosse destruído, Shein prometeu que a banda voltaria para finalizar o show. Para acalmar os ânimos, fez o que julgou ser o mais apropriado. Colocou Nevermind para tocar e entreter o público. Alguém da equipe da banda foi esperto o suficiente para tirar o disco antes que o refrão de Smells Like Teen Spirit inspirasse uma rebelião.

No backstage as coisas se acalmaram. Van Blarcum foi cuidar do corte na sua testa e a banda voltou ao palco para finalizar o show. Foi mais meia hora de som. A banda voltou sem perder a energia e entregou um ótimo show ao público texano. Aparentemente, tudo acabara bem. Porém, nos fundos do bar, quando a banda entrava num taxi para ir embora, Van Blarcum, ainda irritadíssimo, sai das sombras da rua vazia e parte pra cima de Kurt Cobain mais uma vez. O trio já estava no carro, Kurt na janela. O segurança deu um soco e quebrou o vidro e tentou agarrar Cobain e tira-lo de dentro do taxi. Por sorte, o motorista foi mais rápido e acelerou, deixando Van Blarcum frustrado e nervoso no meio da rua.

Mais ou menos um ano depois, o pessoal do Nirvana soube que aquele show de Dallas, em que Kurt apanhou do segurança, foi filmado, incluindo a cena da pancadaria. A banda achou graça e chegou a contratar alguém em Dallas para procurar o dono da fita e conseguir uma cópia. Assim chegaram até Brad Featherstone, um músico amador de Dallas, que frequentava o Trees in Deep Ellum, por vezes para tocar, outras vezes só pra curtir o rolê. E naquela noite, ele levou sua câmera e filmou praticamente todo o show, posicionado ao lado do palco. A cena durante Love Buzz acabou se tornando famosíssima. A própria banda usou o vídeo em alguns momentos, incluindo o home vídeo Live! Tonight! Sold Out! lançado logo após a morte de Kurt Cobain em 1994. Mais de uma década depois, esse trecho do show, filmado por Featherstone, foi postado no Youtube e vem sendo assistido por milhares de pessoas desde então.

Esse show, no Trees in Deep Ellum, foi um dos últimos shows em lugares pequenos que o Nirvana fez. A escalada de vendas avassaladora de Nevermind rumo ao topo, levou a banda a se apresentar em arenas e grandes festivais. Mas foi tudo realmente uma revolução involuntária. Quando a banda assinou com a Geffen, apadrinhados pelos nova iorquinos Sonic Youth, os diretores da gravadora não deram muita atenção ao Nirvana. Não houve interferência durante as gravações do disco e pouco investimento foi aplicado na divulgação. O Sonic Youth havia lançado Goo fazia pouco tempo, e vendera 50 mil cópias. Um número animador para uma banda alternativa. Esperavam que o Nirvana, se muito, fizesse o mesmo número de vendas.

Acontece que em dezembro de 1991, dois meses depois do lançamento do disco, Nevermind vendia 300 mil cópias por semana. Smells Like Teen Spirit tirou Michael Jackson do topo da Billboard e o Nirvana abria caminho para uma horda de músicos maltrapilhos, de cabelo ensebado, camisa de flanela xadrez e jeans rasgados, que tomariam as capas das principais revistas mundo afora. Bandas que, em outra circunstância, ninguém ouviria falar, como Melvins, Pixies, Vaselines, Flipper, Meat Puppets e tantas outras ganharam notoriedade. Bandas de Seattle contemporâneas ao Nirvana e até mesmo mais antigas, se tornaram ícones, como Mudhoney, Soundgarden, Alice in Chains, Screaming Trees e Pearl Jam. Bandas de fora de Seattle, que convergiam em estilo, atitude e sonoridade passaram a ser rotuladas como grunge, como Smashing Pumpkins, L7, Stone Temple Pilots, Silverchair e tantas outras.

Dá pra dizer sem medo de errar que o Nirvana salvou o rock, que estava fadado a mediocridade. Além de seus próprios discos serem brilhantes, Nirvana fez com que centenas de bandas tivessem voz, rejuvenescendo o cenário pop. Kurt Cobain, mesmo negando a desconfortável posição de voz de uma geração, falava abertamente em entrevistas sobre igualdade, racismo, homofobia, misoginia, despertando debates que a maioria dos ídolos pop evitavam, e ainda evitam hoje em dia.

Entre o final de 1991 até o início de 1994, o Nirvana seguiu fazendo shows inesquecíveis e imprevisíveis. Não mais em lugares pequenos, mas sim tocando para multidões. Mas nunca faziam um show regular ou protocolar. Sempre era exagerado para o bem e para o mal, e cheio de surpresas. Fosse Kurt entrando no palco empurrado numa cadeira de rodas, ou usando um vestido de mulher, a banda tocando covers bizarros, se negando a tocar hits (em especial Teen Spirit), às vezes tocando muito bem, às vezes fazendo shows sofríveis, mas sempre fazendo uma bela destruição de equipamento no palco, envolta em microfonia. O show de Dallas marcou a virada do Nirvana, de uma banda underground para o topo da música pop. Pode-se dizer que foi o começo do fim. Mas eu prefiro dizer que foi só o começo. Ponto final.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *