Texto publicado em julho de 2022 em minhas redes sociais.
Quando eu era criança, eu queria ser o Rambo, ou o Lion, dos Thundercats. Cresci um pouco, e na pré-adolescência, eu queria ser o Ferris Bueler. Já adolescente, um pouco mais velho, eu queria ser qualquer pessoa que não fosse eu mesmo. Acho que todo mundo passa por isso nessa idade… enfim. Um pouco mais velho, eu queria ser o Sal Paradise, ou o Jim Morrison, ou o Eddie Vedder… Aí entrei na faculdade, a vida adulta foi acontecendo, e essa coisa de querer ser alguém meio que muda de contexto, né… você vai misturando características. Quero escrever como Hunter Thompson, quero tocar (e quem sabe um dia quebrar) guitarra como Pete Townshend, quero ser descolado e boa gente como o Dave Grohl e por aí vai. Atualmente, com praticamente 40 anos de idade, não faz mais sentido esse negócio de querer ser outra pessoa que não eu mesmo. Estou conformado em ser quem eu sou e feliz, na medida do possível, com a vida que eu tenho. Mas calma, esse texto não é exatamente sobre mim. Mas sim sobre essas referências de vida que vamos cultivando ao longo do tempo. E vou deixar de fora as referências pessoais, tipo familiares, amigos… e focar em personalidades famosas.
O fato de hoje em dia eu não ter a menor pretensão de ser outra pessoa, além de mim mesmo, não impede que eu tenha algumas pessoas que me inspiram, com quem eu tenha uma identificação e tal. O que me chamou a atenção e me motivou a vir escrever sobre isso foi que percebi que até alguns anos atrás eu tinha essa relação com personagens de ficção, heróis, ou estrelas do rock e escritores doidões. Mas hoje em dia duas das pessoas mais influentes da minha vida são… comediantes! À medida que envelheço percebo cada vez mais imperfeições e defeitos nas pessoas, e penso sobre a vida delas e sobre a minha. Peguemos Hunter Thompson. Um gênio. Um dos meus escritores favoritos. Parece muito convidativo o estilo de vida que ele levou. Viver intensamente, drogas, loucura…e ainda assim conseguir escrever com brilhantismo. Não consigo me ver nessa posição. Ou eu fico louco, vivendo na farra, ou me concentro para conseguir escrever um texto bom. Veja que nem estou me comparando ao texto dele, simplesmente estou assumindo que escrevo razoavelmente bem. E que levando uma vida de farra e drogas (que é divertidíssima, ninguém duvida) eu jamais conseguiria escrever sequer um texto razoavelmente bom. Isso eu entendo hoje. Alguns anos atrás eu pensava diferente.
Tem muita gente que acha que devemos separar a obra e a pessoa. Eu também acho, mas até certo ponto. Normalmente esse argumento é usado para falar de posicionamento político. Quem nunca viu um velho conservador falando que o Chico Buarque é um ótimo compositor, mas uma pessoa desprezível por ser “comunista”? Neste aspecto, quem é de esquerda leva vantagem, claro. Afinal, fica difícil encontrar um artista realmente inventivo, inovador e talentoso que seja conservador e de direita. Antigamente até tinha gente como o Nelson Rodrigues e tal. Mas hoje em dia… Mas também não é sobre isso que eu quero falar. Calma que eu vou chegar lá. O fato é que eu gosto de ter o pacote completo. O fato de eu ser um voraz consumidor de biografias me ajuda muito nisso. E faz também com que meu senso crítico absorva o artista como pessoa física e sua obra, e tire minhas conclusões com base nesses dois pontos de vista juntos.
Chegamos onde eu queria. Na comédia. Como eu citei, hoje em dia duas pessoas que me inspiram, me influenciam e admiro são comediantes. Ambos são estadunidenses e estão mortos. Mas isso não vem ao caso. A comédia, de maneira geral, sempre me fascinou, e sempre foi um gênero que eu consumi avidamente. Tanto no cinema, como na TV, na literatura, nos quadrinhos e na comédia stand up. A comédia é uma expressão artística intrigante porque ao mesmo tempo que faz rir, que relaxa, que se faz valer do nonsense, da ingenuidade, da casualidade e, muitas vezes, da desgraça alheia, ela também consegue ser imensamente critica, perturbadora e política. Comecei a aprender isso com mais clareza quando assisti pela primeira vez, talvez há uns vinte anos, o filme O Mundo de Andy, lançado em 1999, dirigido pelo Milos Forman, estrelado pelo Jim Carrey e que retrata a vida e obra do Andy Kaufman.
Kaufman é um dos dois comediantes que hoje são uma referência e inspiração para mim. Não tanto pela sua obra, admito. Mas principalmente pelo seu modo de enxergar a arte, como interpretá-la, a importância de deixá-la livre para mostrar novos caminhos para o próprio artista e para os espectadores. E também, ser fiel a sua essência artística. Andy Kaufman criou tantas personas diferentes para si mesmo, que extrapolavam os palcos e sets de filmagem, que se criou toda uma mística em torno dele. Algo beirando o sobrenatural. Isso ficou evidente no documentário de 2017 Jim & Andy: The Great Beyond. Featuring a Very Special, Contractually Obligated Mention of Tony Clifton. Neste filme, Jim Carrey fala sobre como foi incorporar Andy Kaufman, enquanto várias cenas dos bastidores do filme O Mundo de Andy são mostradas. Para quem já viu o filme e conhece um pouco da história de Andy Kaufman, este doc é um prato cheio!
O outro comediante sobre o qual quero falar, eu tive um contato mais profundo muito recentemente, através também de um documentário. Eu já conhecia um pouco do trabalho dele através de vídeos no Youtube, com trechos de seus shows de stand up. Mas foi através do filme George Carlin’s American Dream, dirigido pelo Judd Apatow e lançao pela HBO Max coisa de um mês atrás. George Carlin me impactou muito. Sua vida e sua obra se confundem, gerando algo difícil de explicar. Um ser humano com uma vida tão errática e conturbada, que não só viu na comédia uma maneira de ganhar seu sustento, como se fez valer dela para se reinventar como pessoa e, de quebra, revolucionar a comédia, mais de uma vez ao longo de carreira. Mas o que mais me encantou na trajetória de George Carlin, foi justamente quando ele estava mais velho, se sentindo estagnado e se deu conta que a solução para ser diferente era ser ele mesmo e expor sem medo suas opiniões sobre problemas sérios e espinhosos para a sociedade em geral. Religião, política, aborto, meio ambiente, eram alguns de seus temas favoritos. E o impressionante é que esses textos de comédia stand up que ele escrevia para seus shows são magníficos! Não só pelo conteúdo, que é sim contestador, ácido, contundente e, claro, engraçado. São textos muito bem elaborados, com um ritmo envolvente, clareza nas ideias, frases bem construídas e uma fluidez invejável. Funcionavam super bem no palco, sendo interpretado por Carlin com sua voz rouca e expressões faciais engraçadas, mas funcionam também como texto a ser lido. George Carlin passou por muita coisa, de um pai abusivo que abandonou a família até o vício a cocaína, passando pela morte prematura de sua primeira esposa. Mas ele nunca deixou de escrever seu próprio material e nunca perdeu as oportunidades de se reinventar profissionalmente e se redescobrir como pessoa mais de uma vez. Realmente um gênio, de quem me tornei grande admirador.
Pra concluir, achei engraçado constatar que depois de passar por tantos heróis, estrelas do rock e escritores junkies, depois de velho e finalmente entendendo quem eu sou e o que eu quero fazer, eu encontre na comédia as referências, inspirações e motivação para seguir em frente. Depois de tanto tempo querendo ser tanta gente, percebo que estou ficando velho, e que não adiantaria nada ter sido outra pessoa no passado. No fim das contas, eu acabaria aqui nesta cadeira, digitando neste computador um texto qualquer. E provavelmente estaria rindo disso, como estou agora, ao me dar conta que a vida é mesmo uma baita piada de mau gosto, e só nos resta escolher se vamos rir dela ou não.