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Raízes Podres

Texto escrito para o site. Junho de 2023

A humanidade está sempre em busca de suas origens. Tudo bem, talvez nem todo mundo tenha esse ímpeto, de querer saber de onde veio, quem eram seus ancestrais e até mesmo porque determinadas costumes e princípios lhe são caros e outros são desprezados. Mas em muita gente que tem isso sim. Para nós, brasileiros, isso acaba sendo até um pouco mais fácil, pelo Brasil ser um país cuja civilização é jovem, tendo apenas um pouco mais de 500 anos. Ou seja, uma boa parte dos brasileiros tem sua origem na miscigenação de indígenas e africanos escravizados com brancos europeus. Outra parte dos brasileiros não tem tanto essa miscigenação, porque são de famílias europeias, que migraram para o Brasil depois do século XIX. O que eu me pergunto é: o que as pessoas fazem com essas informações.

Mais importante do que conhecer suas origens, é entender o que elas representam e como elas refletem na sua própria existência. Estamos presenciando, de uns anos pra cá, uma avalanche de acontecimentos que não podem ser ignorados. Muito pelo contrário, devem ser vistos, analisados, discutidos, pessoas devem ser responsabilizadas e precisamos entender porque essas coisas estão acontecendo, para que a gente possa fazer alguma coisa para evitar que se repitam de novo, e de novo, e de novo, e de novo… Eu estou falando de um homem que ocupando um cargo de ministro, fez um pronunciamento emulando Goebbels e a retórica nazista, um ex-presidente da república que repudia os povos indígenas, aplaude ditadores responsáveis por mortes e torturas, células de grupos neonazistas organizadas e ativas, influenciadores digitais que acreditam que racismo é uma questão de opinião e que um partido nazista não deveria ser proibido de se articular no Brasil e um número assustador de pessoas que acreditam que ser racista, divulgar notícias falsas e defender o nazismo são atos validados pela liberdade de expressão.

É muito comum a gente ouvir algumas pessoas dizendo que o Brasil é o que é por culpa dos portugueses, afinal de se tivéssemos sido colonizados pelos ingleses, holandeses ou franceses, seríamos um país muito melhor. Será? Jamaicanos, haitianos, argelinos, indianos e muitos outros povos provavelmente vão discordar. O fato é que fomos sim colonizados por portugueses. Isso já diz muito sobre o Brasil atual. Portugal, mesmo quando esteve na dianteira do mundo, conquistando terras por toda parte, sempre foi um país culturalmente atrasado. Atrelado à religião, sempre foi retrógrado, conservador e inculto. Isso desde a época do descobrimento até o período imperial, com Dom Pedro I. Além disso, por conta das grandes dimensões do país, o Brasil recebeu o maior número de negros escravizados do mundo. E o modo como a sociedade sempre lidou com essa questão também é muito reveladora. O negro acabou sendo desprezado, sem ser considerado uma pessoa, mas sim um bicho, uma coisa incômoda que habita à margem. Os governos, apoiados pela minoritária população rica, criaram muitas leis para combater o tráfico e a escravidão, para em seguida fechar os olhos e descumpri as mesmas. Quando a escravidão foi tardiamente abolida, ao invés de se criar políticas para integrar os negros libertos à sociedade, eles foram varridos para os morros e criaram-se sim políticas para indenizar os fazendeiros que perderam sua mão de obra. Ou seja, o Brasil sempre foi elitista, segregador e sempre colocou seus interesses (geralmente escusos) acima do cumprimento das leis.

Um ano depois da Lei Áurea ser assinada, vem o golpe militar que derrubou Dom Pedro II e acabou por instaurar a república no Brasil. Durante toda a República Velha, quem realmente mandava no Brasil era a aristocracia, uma verdadeira bancada ruralista. A mesma classe rica e minoritária que se coloca acima das leis e das pessoas, desde os senhores de engenho das primeiras capitanias hereditárias até os barões do café da República do Café com Leite. Uma aristocracia capaz de manipular governantes através do dinheiro. No início do século XX o Brasil começa a prosperar e se desenvolver. Cada vez mais, jovens filhos de famílias ricas vão estuar na Europa e voltam trazendo novas ideias, hábitos e produtos. Da mesma forma, a imigração de estrangeiros em busca de novas oportunidades também ajuda a desenvolver novos centros urbanos em especial no sul e sudeste do Brasil. E quanto mais esses centros urbanos se desenvolvem, mais arrastam para os arrabaldes e periferias os negros, abandonados à própria sorte, sem oportunidade de estudo ou trabalho digno. 40 anos depois, um novo golpe militar muda o cenário político do Brasil. A chamada Revolução de 1930 nada mais foi do que um golpe de estado que alçou Getúlio Vargas ao poder, quebrando o protagonismo de paulistas e mineiros. A era Vargas chegava para acrescentar um novo ingrediente perigosíssimo a essa elite brasileira conservadora: o fascismo.

O início da década de 1930 foi um dos períodos mais emblemáticos da história. O fim da Primeira Guerra Mundial deixou a Europa devastada, e alguns países seriamente prejudicados. Enquanto isso, a Rússia crescia exponencialmente e espalhava ideias comunistas, depois de ter passado pela grande revolução de 1917. Países devastados pela guerra eram solo fértil para plantar o comunismo, mas também para fazer florescer um ódio cego contra qualquer um, afinal, alguém tinha que ser culpado por tanta desgraça. Foi nesse cenário que Mussolini ascendeu na Itália e Hitler na Alemanha. Hitler e Mussolini eram objetos de admiração de Getúlio Vargas, que passou a ter como um de seus principais objetivos caçar e aniquilar comunistas. Isso tomou proporções diabólicas após a instauração do Estado Novo, em 1937. A mais sanguinária e vil ditadura que o Brasil presenciou. Nessa época o abismo entre classes sociais seguia inabalável. Dado todo o histórico social do Brasil até aqui, conservador, retrógrado e elitista, não é surpresa para ninguém que o partido nazista tivesse uma célula forte por aqui. Mais que uma célula forte, o partido nazista no Brasil era o maior do mundo em número de associados, perdendo apenas para a sede do partido, na Alemanha. O partido tinha células em vários países do mundo, desde os Estados Unidos até o leste europeu e na Argentina. Mas nenhum tinha tantos filiados quanto o Brasil.

O partido nazista foi fundado no Brasil em 1928, na cidade de Timbó, próxima a Blumenau, no estado de Santa Catarina. A imigração de alemães foi muito importante para o sul do Brasil, principalmente no século XIX. Os primeiros alemães chegaram no Rio Grande do Sul e Santa Catarina por volta de 1824. Mas foi no segundo ciclo migratório, logo após o fim da Primeira Guerra Mundial, que alemães vieram para o Brasil, fugindo da crise durante a República de Weimar, e se estabeleceram em São Paulo e Santa Catarina, trazendo na bagagem os ideais nazistas. O partido foi fundado no Brasil em 1928, mas se consolidou mesmo após a chegada de Vargas no poder. O partido nazista apoiou o ataque a São Paulo em 1932 e teve acesso aos primeiros escalões do governo de 1933 em diante, quando Hitler se tornou chanceler da Alemanha. Em 1934 o partido nazista no Brasil tinha quase 3 mil filiados e tinha se espalhado por 76 cidades do Brasil, em estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco, Pará e Paraná. Fora da Alemanha era a maior célula nazista do mundo, na frente até mesmo da Áustria, terra natal de Hitler. Por aqui, os nazistas, naturalmente antissemitas, não tinham tantos judeus para rivalizar, então voltaram seu ódio aos negros, indígenas e miscigenados. O partido não aceitava membros que não fossem comprovadamente alemães natos ou descendentes diretos de alemães. Afinal, a eugenia sempre foi um pilar do nazismo. O partido nazista acabou extinto no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial, quando Vargas foi convencido, contra sua vontade e contra a vontade de generais como Dutra e Góis Monteiro, a se aliar aos Aliados. É sempre bom salientar. Getúlio Vargas simpatizava com Mussolini e Hitler e queria se aliar ao Eixo, já que era ele próprio um ditador fascista no Brasil naquela época. Além disso, o Brasil contava naquela época com o Partido Integralista, os famosos galinhas verdes. Os integralistas eram nacionalistas de extrema direita (a.k.a. fascistas), e o partido nazista, muito excludente e rigoroso, não permitia que qualquer cidadão brasileiro, mesmo tendo ascendência germânica, se juntasse a ele. Assim, muitos descendentes de alemães começaram a migrar para o partido integralista. Partido este que foi mais uma das muitas faces dessa direita torpe e conservadora brasileira.

Apesar de todo o autoritarismo e truculência, a Era Vargas trouxe algum progresso à sociedade brasileira, democratizando um pouco o acesso ás urnas e estabelecendo uma legislação trabalhista, que até então inexistia no país. Nas décadas de 1950 e 1960 o Brasil se desenvolveu bastante, mas ainda muito pouco era feito para diminuir o abismo social e efetivamente integrar a população negra à sociedade. Criou-se assim essa imagem que foi perpetuada ao longo das décadas de negro é pedreiro, porteiro ou bandido. Muita gente diz que o Brasil não é um país racista, justificando que aqui nunca teve nada como o ocorrido nos Estados Unidos, de haver, de fato, uma segregação, banheiro exclusivo para negros, transporte coletivo com assentos marcados e etc… Essas coisas não aconteceram por aqui porque os negros sequer tinham a oportunidade de frequentar restaurantes ou lanchonetes, já a elite branca brasileira, jamais se sujeitou a andar de ônibus ou de bonde. Portanto, essa segregação sempre rolou no Brasil Os restaurantes e lanchonetes que os negros frequentavam, e boa parte ainda frequenta, são os da periferia, onde uma maioria negra já habita, bem como é uma maioria de negros que se faz valer do transporte público para ir trabalhar e ir de um lugar ao outro de maneira geral. E, se hoje em dia, a maior parte da população das favelas e periferias é formada por pessoas pretas, se a maior parte da população carcerária é formada por pessoas pretas, se  a esmagadora maioria da população universitária do Brasil é formada por pessoas brancas, se a esmagadora maioria das pessoas sente um medo involuntário de ser roubada ao ver uma pessoa preta numa rua vazia, se uma família de pessoas pretas num carro, indo para uma festa, em plena luz do dia, é “confundida”, e “confundida” entre muitas aspas, por bandidos e tem seu carro alvejado de balas por militares. Olha, se tudo isso acontece, e você sabe que acontece, o Brasil é sim racista pra caralho!

Voltamos ao início do texto. Ministro emulando Goebbels, youtuber falando que racismo é liberdade de expressão, células neonazistas em atividade no sul do Brasil. E isso continua. Mês passado, em maio de 2023, um deputado do Mato Grosso do Sul discursou citando, e exibindo em suas mãos um exemplar, o livro Mein Kampf, de Adolf Hitler. Por mais que negros, bem como homossexuais, mulheres, indígenas e etc, tenham mais voz hoje em dia, que existam políticas de cotas para negros em empregos públicos e universidades, ainda há muito o que evoluir. E não vai ser ignorando o racismo e manifestações neonazistas e neofascistas que vamos mudar alguma coisa. Eu sei que muitas vezes nos sentimos impotentes frente a essas questões. Até nos indignamos quando vemos as notícias e tal. Mas, o que mais podemos fazer? No mínimo, podemos falar a respeito. A minha maneira é escrevendo este texto, buscando as origens de um comportamento profunda e dolorosamente enraizado na nossa sociedade. Levantando a reflexão de que em pleno 2023 não cabem mais determinadas piadas, por mais que se considerem “ingênuas” ou “só uma piadinha, é humor e não racismo”. Não dá mais. Assim como não dá pra aceitar um deputado empunhando o Mein Kampf no púlpito, assim como não dá pra aceitar que um pastor evangélico diga que homossexuais merecem sofrer e ainda ser aplaudido por toda uma congregação, assim como não dá pra aceitar que um homem negro seja morto por policiais numa câmara de gás improvisada, assim como não dá pra aceitar pessoas defendendo golpe militar. Não dá pra aceitar. Mas é necessário falar sobre tudo isso de maneira crítica e racional, para que a gente consiga, pelo menos, começar a identificar e eliminar cada uma dessas nossas raízes podres.

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