Escrito para o site. Fevereiro de 2023.
Já passava das onze horas da noite e a festa seguia muito animada. Era um baile muito aguardado, e o mais requintado já realizado na história do império brasileiro. Àquela altura, todos já haviam jantado e a pista de dança estava movimentadíssima. A competente orquestra tocava polcas e valsas e as mais de mil pessoas presentes dançavam e bebiam champanhe e vinho. É quando um dos conselheiros do imperador Dom Pedro II, um homem brilhante, engenheiro e inventor, poliglota e muito bem educado, se aproxima gentilmente de uma dama que estava sentada e a convida para dançar. Ela o olha com desdém e recusa o convite. Uma cena embaraçosa. Porém, a princesa Isabel, filha do imperador, observava a cena. Ela logo se levanta, vai até o cavalheiro rejeitado e os dois dançam alegremente pelo salão, sob o olhar incrédulo da dama que o rejeitou. Tal ama, ninguém sabe ao certo quem era, mas era uma mulher branca. Já o cavalheiro era ninguém menos que André Rebouças, amigo íntimo de Dom Pedro II, da princesa Isabel e do Conde D’Eu, além de ser um dos raros homens negros bem sucedidos da sociedade brasileira.
Vale dizer que o baile em questão era o Baile da Ilha Fiscal, também conhecido como último baile do império. Ele aconteceu no dia 9 de novembro de 1889, seis dias antes do golpe militar que derrubaria a monarquia e iniciaria a república no Brasil. André Rebouças era mais do que monarquista, era realmente amigo do imperador e da princesa. Por isso mesmo, quando a monarquia caiu, ele fez questão de se auto exilar e partiu no mesmo navio da família real rumo à Europa, para nunca mais voltar ao Brasil. Mas ao longo de sua vida, antes dessa partia, fez muito pelo país. Além de um engenheiro perfeccionista e eficiente, foi peça indispensável para o movimento abolicionista, ao lado de José do Patrocínio e Joaquim Nabuco.
André Pinto Rebouças nasceu na vila de Cachoeira, na Bahia, no dia 19 de janeiro de 1938. Era filho do casal Antônio Pereira Rebouças e de Carolina Pinto Rebouças. A família Rebouças já tinha um passado glorioso. O pai de André, Antônio Rebouças, era um advogado de muito prestígio, foi deputado e chegou a frequentar o círculo de amizades de Dom Pedro II. O tio de André, irmão de Antônio também foi um homem importante. O Dr. Manuel Maurício Rebouças, médico e catedrático da Faculdade de Medicina da Bahia. Antônio e Manuel eram filhos de uma escrava alforriada com um alfaiate português. Eram negros, mas graças à boa condição do pai, puderam estudar e se destacar em suas profissões. Portanto, André cresceu numa família com uma vida econômica confortável e com oportunidade e acesso ao estudo.
Com oito anos de idade, André mudou-se com a família para o Rio de Janeiro. Aos 16 ingressou na Escola Militar. Foi onde conseguiu, com altas notas e excelente desempenho, formar-se bacharel em Ciências Físicas e Matemáticas pela Escola Militar da Praia Vermelha em 1859, com 21 anos de idade. Tornou-se assim engenheiro militar. Graças ao seu desempenho acima da média, conseguiu participar de uma espécie de intercâmbio fornecido pela Escola Militar. Entre 1861 e 1862, ele conheceu e pode estudar engenharia em cidades como Paris, Londres, Liverpool e Manchester. O imperador Dom Pedro II, que era um homem ligado às ciências, estava sempre em contato com os principais intelectuais da Escola Militar. Foi quando conheceu e se impressionou com o currículo de André Rebouças.
Em 1963 já rolava um clima de animosidade entre o Brasil e o Paraguai. Temendo um conflito em terras brasileiras, Dom Pedro II designou especificamente o André e seu irmão, Antônio Rebouças Filho, que também era engenheiro, para vistoriar e fazer melhorias, se necessário, nas fortificações militares de todo o sul do Brasil. Ao longo dessa viagem, André se encantou particularmente pela região de Paranaguá, onde fez algumas reformas na fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres, situada na atual Ilha do Mel, no Paraná. No futuro aquela região passaria por uma grande transformação graças aos dois irmãos Rebouças. Mas antes disso, em 1865, já de volta ao Rio de Janeiro, André elabora um minucioso e brilhante projeto de abastecimento de água para a cidade, se fazendo valer de mananciais e fontes além dos limites da cidade, nas serras que envolvem a então capital do Brasil. O projeto é aprovado e melhora muito a situação de toda a população, com abastecimento abundante de água limpa para toda a cidade. Nessa mesma época, ele desenvolveu um outro projeto, com o objetivo de revitalizar o antiquado e pequeno porto do Rio de Janeiro e suas docas. Mas este projeto, que não dependia de uma aprovação prévia de Dom Pedro II, foi vetado. E há indícios de que o projeto não foi aceito por ter sido elaborado por um homem negro.
Ainda no ano de 1865 a Guerra do Paraguai se agrava. André Rebouças prontamente se alista como voluntário para lutar no front. É enviado direto para Uruguaiana, no Rio Grande o Sul. Lá conhece o Conde D’Eu, marido da princesa Isabel. Os dois logo se tornam amigos. Em 1866, André vai para a central de comando do exército brasileiro no Paraguai, onde não só ajudou a elaborar estratégias de ataque, como inventou um torpedo que fazia um estrago considerável onde explodisse. Sua invenção ajudou muito o Brasil a avançar em território inimigo. Mas a vida de combatente durou pouco. A verdade é que André Rebouças tinha uma saúde frágil, era um rapaz franzino. Quando criança, chegou a pegar varíola e ficou tão mau, que os pais acreditavam que ele não sobreviveria. Pois justamente no ambiente insalubre dos charcos paraguaios, André contraiu pela segunda vez a varíola. Ficou muito doente, teve baixa e foi enviado de volta ao Rio de Janeiro.
A Guerra do Paraguai foi um fiasco, apesar do Brasil ter saído como vitorioso. Foi uma guerra sangrenta e injustificada. Uma verdadeira carnificina pela qual todo brasileiro deve se envergonhar. Claro, foi um conflito com muitas nuances, o Paraguai começou a guerra tentando invadir o Brasil e tal… mas era algo que poderia ter sido resolvido em muito menos tempo e com muito menos gente morta. Mas isso é assunto para outro momento. O fato é que, com o fim da guerra em 1870, André Rebouças voltou a se dedicar à engenharia. Foi quando elaborou seu projeto mais emblemático e grandioso! A ferrovia que liga Paranaguá a Curitiba, entrecortando toda a Serra do Mar. Um projeto ousado e inédito no Brasil até então. Em 1871 o projeto é aprovado e começam as obras soba supervisão atenta dos irmãos André e Antônio Rebouças. A obra só seria concluída em 1883,com grande êxito. Até hoje está em funcionamento. É uma das mais importantes e belas atrações turísticas do estado do Paraná. O trecho entre Paranaguá e Morretes tem paisagens maravilhosas.
A década de 1870 no Brasil é marcada também por uma grande agitação política. Ao mesmo tempo que movimentos republicanos começam a aparecer, surgem também muitas manifestações abolicionistas. André Rebouças era um homem tímido e sem talento para oratória. Mas tinha um texto vigoroso e ideias muito revolucionárias. Ao lado de personalidades como Machado de Assis, Cruz e Sousa e José do Patrocínio, André Rebouças integrava a diminuta classe média-alta de negros e deles foi uma das principais vozes. Foi fundador da Sociedade Brasileira Contra a Escravidão, integrou a Confederação Abolicionista e redigiu os estatutos da Associação Central Emancipadora dos Escravos. Era um frequente articulista dos principais jornais do Brasil, onde expunha ideias que extrapolavam o simples fim da escravidão, mas sim propunha um plano de apoio aos negros libertos, para que pudessem ter um sustento e uma vida digna. Uma de suas ideias versava sobre uma reforma agrária, que propunha a diminuição dos grandes latifúndios e distribuição de terras para os negros libertos e pessoas em situação de pobreza. Imagina como ele devia ser bem quisto entre o crescente círculo de latifundiários barões do café.
André Rebouças, além de abolicionista, era também ferrenho monarquista e, após o fim da Guerra do Paraguai, manteve sua amizade com o Conde D’Eu, estreitou seu convívio com o imperador Dom Pedro II, chegando a ser seu conselheiro, e também tornou-se amigo próximo da princesa Isabel. Hoje sabemos que, um home esclarecido como era, Dom Pedro II compartilhava de ideais abolicionistas. Porém, se via preso politicamente a uma nobreza cada vez mais influente e poderosa de latifundiários, que enriqueciam numa velocidade galopante, graças ao café, produzido com mão de obra escrava. A história do Brasil com a escravidão é das mais repugnantes e assombrosas. Fomos o último país relevante do mundo moderno a libertar os escravos, fomos o país que mais recebeu africanos no continente, fomos o país que mais burlou e desprezou as leis de combate ao tráfico negreiro. Tudo isso é a base do que hoje chamamos de racismo estrutural, que deve ser compreendido, para que possamos repelir esse tipo de comportamento. Mas enfim, isso também é assunto para um outro momento. O fato é que André Rebouças e seus companheiros abolicionistas finalmente puderam comemorar no dia 13 de maio de 1888, quando a princesa Isabel assinou a famosa Lei Áurea, que finalmente abolia a escravidão no Brasil. Uma lei capenga, verdade seja dita. Afinal libertou, mas não garantiu apoio nenhum aos negros. Além disso, foi a lei que acabou por enfraquecer ainda mais a monarquia. Princesa Isabel era a sucessora direta ao trono de om Pedro II, mas jamais seria coroada. Ao presenciar a assinatura da lei, o Barão de Cotegipe, deputado que era contra a abolição dos escravos, teria profetizado, dizendo à princesa: “Vossa alteza libertou uma raça, mas acaba de perder o trono.”.
Dito e feito. Em 1889, no dia 15 de novembro, pouco mais de uma semana depois do Baile da Ilha Fiscal, onde André Rebouças foi rejeitado pro uma mulher branca e acabou dançando com a princesa Isabel, Marechal Deodoro da Fonseca deflagrou o golpe militar que derrubou a Dom Pedro II e instaurou a república no Brasil. Não vamos entrar aqui em minúcias sobre a proclamação da república, porque é um assunto interessantíssimo, mas igualmente longo e repleto de camadas a serem pensadas. Assim, dois dias depois do golpe, 17 de novembro de 1889, Dom Pedro II e sua família são exilados e embarcam num navio com destino a Lisboa. André Rebouças, leal à família real, decide por um auto exílio e embarca junto com o imperador. Logo nos primeiros meses em Lisboa, ele atua como correspondente o jornal britânico The Times. Mas logo depois, mudou-se para Cannes, na França, junto com Dom Pedro II. Rebouças estava ao lado do imperador no hotel Bedford, em Paris, na madrugada de 5 de dezembro de 1891. Foi quando Dom Pedro II deu seu último suspiro.
A morte de Dom Pedro II abalou muito André Rebouças. Ele foi tomado por uma forte depressão. Desorientado e sem conseguir trabalhar, ele decidiu fazer uma viagem pela África, talvez em busca de suas raízes, talvez inspirado por poetas românticos como Rimbaud, ou ainda empenhado em lutar pela libertação dos povos que ainda viviam como colônias de países europeus… não se sabe ao certo. Mas ele passou por Zanzibar, Moçambique até chegar na região do Transvaal, uma região que hoje pertence a África do Sul. No Transvaal, já claramente desequilibrado mentalmente, ele elabora um plano delirante de fornecer roupas a toda a população daquela região. Seu projeto é minucioso e prepotente, visando resolver dois problemas: a falta de roupas para os africanos e um incentivo à indústria têxtil, que estava em franca decadência na Inglaterra, com a expansão da revolução industrial. Eram 300 mil habitantes naquela região africana. Segundo suas contas, para oferecer seis mudas de roupa para cada um , a indústria inglesa iria fornecer 5,4 metros de tecido de algodão. Claro que esse projeto nunca foi colocado em prática. Já debilitado, doente e amargurado, Rebouças volta a Portugal e se estabelece na cidade de Funchal, na ilha da Madeira.
No dia 9 de maio de 1898, faltando apenas 4 dias para a celebração dos dez anos da libertação dos escravos no Brasil, André Rebouças foi encontrado morto à beira mar abaixo de um penhasco na cidade da Funchal. Se ele caiu por acidente ou se jogou para a morte, jamais saberemos. Mas, a notícia de sua morte repercutiu no Brasil e logo ele foi reconhecido como uma das personalidades mais importantes do século XIX. Foram feitas a ele muitas homenagens. As mais célebres e duradouras são o túnel André Rebouças, que interliga os bairros de Rio Comprido e da Lagoa na cidade do Rio de Janeiro e a avenida Rebouças, na cidade de São Paulo, que liga a avenida Paulista à Marginal Pinheiros.
André Rebouças foi um homem brilhante e sua vida e obra devem ser relembradas e celebradas cada vez mais. Entender a vida de Rebouças significa ter uma compreensão ampla do racismo estrutural e da herança nefasta da escravidão. O legado de Rebouças é muito maior do que uma audaciosa ferrovia que corta montanhas, pois é também a conscientização da necessidade de proporcionar a todos educação e oportunidades iguais.
Uma resposta em “O indispensável legado de André Rebouças.”
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