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AS PENAS (conto inspirado na HQ de Laerte Coutinho)

AS PENAS
Um conto inspirado na HQ “Penas”, de Laerte Coutinho, publicada na revista Chiclete com Banana em 1988.

Carlos acabara de se formar em engenharia civil. Entusiasmado, ele buscava uma oportunidade de emprego, confiante de que conseguiria uma boa vaga, pois seu currículo era um dos melhores da turma, com ótimas notas e estágios onde fora muito bem recomendado. Numa noite, ao se deitar para dormir, sentiu alguma coisa espetando suas costas, próximo aos ombros. Pensou ter se deitado em cima de qualquer coisa, mas não havia nada na cama. Intrigado foi até o banheiro e, de costas para o espelho, olhou por cima do ombro e viu algo como pequenas penas saindo de dois pontos de suas costas, logo abaixo dos ombros.

Nessa noite acabou dormindo de barriga para baixo. Ao acordar de manhã voltou a olhar-se no espelho e constatou que as penas cresceram um pouco mais. Vestiu-se e foi de bicicleta ao pronto socorro mais próximo. No hospital, o médico que o atendeu ficou assustado, era um jovem residente. Chamou seu supervisor, um médico mais velho, que era professor. Tal qual o jovem, o professor não soube o que fazer, afinal, para que especialidade se encaminha um paciente em que estejam crescendo penas em suas costas? A história correu o hospital, depois correu outros hospitais e clínicas da cidade. Até que a notícia de um homem com penas nas costas chegou até o doutor Hildebrando Petrolino Motta, Doutor Motta para os amigos.

Doutor Motta era um médico sério e reservado, muito conceituado em todo o país. Com seus 74 anos de idade e mais de 50 de profissão, acumulara uma fortuna invejável e já estava aposentado. Mas quando soube da história de Carlos, solicitou a um amigo que lhe emprestasse seu consultório no centro da cidade e entrou em contato com Carlos, marcando uma consulta. Nessa altura, já havia passado um mês e meio desde o aparecimento das primeiras penas. Agora Carlos já carregava nas costas um par de asas de tamanho médio, praticamente do tamanho de seu torso, com penas claras, levemente acinzentadas, que ele tentava manter o mais fechadas possível, usando roupas largas para disfarçar tal volume.

No consultório emprestado, Doutor Motta recebeu Carlos com todas as janelas fechadas e sem recepcionista ou secretária. Convidou-o a entrar numa sala com uma maca. Ali pediu que ele tirasse a camisa. Analisou as asas e fez os exames de praxe que qualquer médico sempre faz. Mediu pressão, escutou os pulmões, coração, apalpou fígado, conferiu reflexo dos joelhos e até fez um exame de acuidade visual. Ao terminar disse:

– Estás com uma saúde de ferro, senhor Carlos.

– Mas e as asas?

– Também estão bem. Já tentou usá-las?

– De jeito nenhum! Ainda que eu consiga voar, o que dirão quando me virem? Me tratarão como uma aberração.

– Não é aberração, senhor Carlos. Mas sim evolução. O senhor é capaz de guardar segredos?

– Claro, sempre fui confiável… mas… evolução?

Doutor Motta calmamente tirou seu jaleco e sua camisa. Carlos olhava com espanto Doutor Motta sem camisa, abrindo atrás de si um vistoso par de asas que, fechadas lhe caíam até os joelhos, e abertas eram maiores que seus braços, e tal qual as dele, eram penas claras e acinzentadas. Ele estava estupefato.

– Senhor Carlos, somos poucos no mundo ainda, mas entendemos que isso faz parte de uma evolução. Podemos voar, temos nossa visão e o raciocínio um pouco acima da média da humanidade. Hoje à noite lhe apresentarei a alguns amigos.

Naquela noite Doutor Motta buscou Carlos e foram em seu carro, com um chofer impávido e silencioso dirigindo, até uma mansão afastada da cidade aproximadamente 50 quilômetros. Ao entrar, foram até um salão imenso e com pouca iluminação, onde uns quarenta homens, todos aparentando ter mais de cinquenta anos de idade conversavam em pequenos grupos. No meio do salão, uma mesa comprida com queijos finos e canapés e muitas garrafas de vinho e uísque.

Doutor Motta foi de grupo em grupo apresentando Carlos, que era sempre recebido com um forte aperto de mão e sorrisos, olhos brilhando, todos emocionados por receber em seu grupo alguém tão jovem.

A reunião foi noite adentro com muita bebida sendo consumida. Carlos conversou com muita gente, contou sua história e ouviu a história de muitos, histórias bem parecidas com as suas. Em certo ponto da madrugada, uma grande porta lateral foi aberta e todos foram animados para o jardim. Sob o luar, todos tiraram suas camisas e alçaram voo. Carlos, inseguro, fez o mesmo. Tirou a camisa, abriu as asas e deu um forte impulso. Quando se deu conta, planava alto, como se soubesse voar desde criança. Poucas vezes sentiu-se tão bem. Na verdade nunca se sentira tão bem antes em toda sua vida.

Depois daquela noite, Carlos passou a frequentar semanalmente as reuniões naquela mansão, que ele não sabia exatamente a qual dos senhores ela pertencia. Mas isso não importava. Duas semanas depois de sua primeira reunião acertou com um de seus companheiros alados, que também era engenheiro, um emprego em sua construtora. O salário era bom, as reuniões eram ótimas voando na madrugada meio embriagado… até que, como qualquer jovem, sentiu sua libido clamar. Mas como abordar uma garota e fazê-la entender sua condição evolutiva? Foi pedir conselho a seus companheiros e constatou aterrorizado que todos eram solteiros e muito raramente faziam sexo. Quando o faziam, tinham todo um mecanismo.  Primeiro, pagava-se bem uma garota de programa de luxo e estabelecia com ela que tudo seria feito com luzes apagadas e sem mudança de posição, seria sempre ela por cima, desta forma, o homem poderia deitar-se sobre suas asas, escondendo-as, e sempre ressaltavam às garotas: Nem tente me abraçar.

No início, ficou consternado por ter que viver uma vida de quase celibato, mas com o tempo, acabou se acostumando. Dedicado no trabalho, como a maioria de seus amigos alados, diga-se, enriqueceu rapidamente. Com amigos de asas em diversos setores da sociedade, tinha ótimos contatos, sempre fazia bons negócios e divertia-se muito. Adaptou-se bem a vida de solteiro, esporadicamente pagando por sexo, mas frequentemente flertando com várias mulheres que o achavam atraente e charmoso, por ser tão reservado, e acabava conseguindo, vez ou outra, trocar carícias sem ter que tirar a camisa.

Oito anos se passaram desde que suas asas começaram a aparecer. Carlos agora estava com trinta e quatro anos, já tinha sua própria empresa, uma firma de consultoria a grandes construtoras. Foi então que suas penas começaram a cair. Primeiro, ao tomar banho, Carlos viu umas quatro ou cinco penas o chão do box. Daí em diante, punhados de penas caíam diariamente. Desesperado, procurou seus colegas que, passaram a fechar suas portas sem sequer conversar com ele.

Compreensível. Carlos ascendeu muito rápido. Enriqueceu, era astuto, jovem, voava mais alto que os outros, fazia acrobacias e tinha jeito com as mulheres sem se expor. Isso causou inveja aos senhores, que levavam suas vidas com conforto, mas sem tanta leveza. Tudo era sisudo e misterioso. Quando as penas de Carlos caíram, todos acharam que era um sinal de que ele não era digno, era apenas um acidente da natureza e não um ser evoluído.

Certo dia, ao voltar de uma reunião em outro estado, Carlos estava no banheiro do aeroporto urinando, para em seguida pedir um Uber e enfrentar o longo caminho com trânsito pesado para voltar para casa. Enquanto lavava as mãos e se preparava para sair, um rapaz mais ou menos da sua idade, o cutucou e disse sorrindo:

– Amigo, isso é seu?

Em sua mão direita o rapaz mostrava uma pena clara acinzentada. Carlos foi tomado pelo pânico, será que o rapaz vira algo? Ele se descuidara desta maneira no banheiro? Percebendo o desespero que dominava Carlos, o rapaz ainda sorrindo falou:

– Se acalma, cara. Eu também já tive dessas. Vem, vamos tomar uma cerveja.

Se sentaram num bar no vasto saguão do aeroporto, cada um com um chopp a sua frente.

– Foi mal, eu não queria te assustar. Meu nome é Marcelo. Você é o Carlos, né? Eu sei de você faz um tempo, mas queria ter certeza antes de te procurar. Agora que suas penas estão caindo, sei que você é um de nós. Suas penas vão voltar a crescer, fica tranquilo. Quando isso acontecer, você me manda uma foto e a gente volta a conversar. E não esquenta com aqueles velhotes, eles não sabem de nada. Ah, sim! E mais cuidado daqui pra frente onde você deixa cair suas penas.

O rapaz deixou um cartão com seu nome e número de telefone na mesa, virou seu copo de cerveja, apertou a mão de Carlos e saiu.

Um ano se passou. Todas as penas de Carlos caíram. No lugar, cresceram novas penas. Ainda maiores e mais bonitas, e desta vez, eram azuladas, ao invés de acinzentadas. Ele pegou seu celular e mandou uma foto para Marcelo. Ele responde com uma mensagem de texto: “Excelente, cara! Amanhã você recebe uma carta nossa.” No dia seguinte, Carlos recebe um envelope sem remetente. Dentro um bilhete: Te esperamos depois de amanhã. Junto, uma passagem de avião para Östersund, na Suécia. Mas seu destino final seria a cidadezinha de Skyttmon, quarenta quilômetros de distância do aeroporto de Hallviken.

 

Hoje completa um mês que Carlos está morando em Skyttmon. Ele saiu cedo de casa para trabalhar. Vestiu seu terno adaptado, deixando suas asas livres, alçou voo da sacada do seu apartamento e voou para o trabalho, passando por uma meia dúzia de colegas alados, eram todos jovens sorridentes, homens e mulheres, e de penas azuladas. Ele volta para casa por volta de oito da noite, mas o dia ainda é claro e limpo, já que no verão, anoitece muito tarde por lá. Ele se prepara para sair para jantar com uma garota que conheceu há duas semanas. Pretende pedi-la em namoro no jantar, enquanto explica a ela, que esse papo de evolução é besteira. Ele só e diferente de outros caras por um detalhe, uma vantagem, por que não dizer? Mas não se sente superior. Tudo corre como planejado. Com o dia escurecendo, eles voltam para casa dele voando, ela montada nas costas dele sorrindo com os cabelos esvoaçantes e uma garrafa de vinho Bordeaux na mão esquerda.