Categorias
Música

A Conquista do Espelho – Uma Entrevista com Humberto Gessinger

A CONQUISTA DO ESPELHO
Uma entrevista com Humberto Gessinger
Texto publicado em outubro de 2015 na Revista Vanilla (Pato Branco-PR)

Completando 30 anos de carreira, Humberto Gessinger não dá sinais de cansaço. Está lançando um DVD, percorrendo o país com shows lotados e acaba de ser indicado ao Grammy.

Muita coisa mudou desde 1985. Política, comportamento, tecnologia, arte. Mas algumas coisas permanecem iguais, apenas se adaptando às mudanças, porém, com a mesma essência. Esta é uma boa maneira de definir a obra de Humberto Gessinger ao longo destes 30 anos. Um artista autêntico, que arrebanhou fãs devotos, com canções críticas e muito pessoais.

Nos Engenheiros do Hawaii, no Gessinger Trio, no Pouca Vogal, em seu disco solo ou em seus livros, encontramos o mesmo homem. Ainda no Longe Demais das Capitais, primeiro disco dos Engenheiros do Hawaii, lançado em 1986, há uma canção chamada Todo Mundo É Uma Ilha. O vigésimo disco da carreira de Gessinger, lançado em 2013, se chama Insular, palavra que se refere a uma ilha.

Humberto gosta de se ver como um maratonista em relação a sua obra. Sendo assim, ele está prestes a conquistar mais uma medalha. Insular Ao Vivo, além de já virar DVD de Ouro, com mais de 25 mil cópias vendidas, acaba de ser indicado ao Grammy Latino na categoria Melhor Disco de Rock. Saiba agora o que o próprio Gessinger, que se apresentou recentemente em Pato Branco, tem a dizer sobre esses e outros assuntos.

Você já explicou em entrevistas que o disco Insular traz o seu nome, e não Engenheiros do Hawaii, porque vários músicos participaram das gravações. Sendo tanta gente diferente em estúdio, como foi o processo de levar essas canções para o palco com um power trio?

Disco e show são experiências diferentes. Mesmo que fosse possível levar todos os convidados para a estrada, seria impossível para mim tocar ao vivo todos os instrumentos que toquei no disco. E mesmo que isso fosse magicamente possível, o resultado seria muito fragmentado. Isso no disco é legal, num show seria excessivo.

Optei pelo trio por ser o formato em que mais me sinto à vontade e no qual fiz grande parte da minha carreira. Como o show desde o princípio foi pensado para ter música de todas as fases, fazia sentido voltar ao baixo e ao trio.

Tocar num trio é uma experiência muito intensa, talvez por isso existam tão poucos na ativa. Mas pra quem topa o desafio, o resultado vale a pena. O show tem 3 momentos: além de guitarra, baixo e bateria, há um set de teclados e um momento acústico que fazemos com acordeom, violão e percussão. Rola uma dinâmica bem legal.

O passar do tempo e envelhecer são temas muito recorrentes em Insular. Como você encara o fato de estar envelhecendo e como isso reflete no seu trabalho?

O tempo talvez seja o elemento mais importante da música. Em várias escalas: o tempo de um compasso, de uma canção, de um disco, de uma carreira…

A cultura pop é dominada pela síndrome de Peter Pan – o medo de amadurecer. Mas eu não tô nessa, quero mais é testemunhar a passagem do tempo. Gosto das rugas no rosto, dos fios de cabelo que já estão grisalhos e dos calos nos dedos depois de 30 anos tentando domar as cordas dos instrumentos. Cada fase da vida tem seus atrativos, negá-las é negar a vida.

Acho que componho melhor agora e me sinto, finalmente, à vontade nos palcos. Sempre foi estranho para mim essa loucura de ser uma pessoa pública. Hoje sei lidar melhor com isso.

O show do DVD Insular foi gravado em Belo Horizonte, e conta também com algumas canções acústicas gravadas na serra gaúcha. Qual foi o critério de escolha destes lugares para estes registros ao vivo?

Eu já havia gravado DVDs no Rio, em São Paulo e Porto Alegre. Estava mais do que na hora de retribuir o imenso carinho que recebo há tanto tempo do público mineiro. Quanto às gravações na serra gaúcha, tem tudo a ver com minha história pessoal, sou descendente de colonos alemães e italianos que se estabeleceram por ali no século 19. E também tem tudo a ver com o clima mais intimista e regional que eu queria nas canções.

Você falou em algumas entrevistas recentes sobre a renovação do seu público. Como é para você dialogar com este público mais jovem que está acostumado a comprar canções soltas via internet, sendo você um artista que sempre valorizou o álbum como um todo?

Pois é, mudou tanta coisa que até é difícil falar do passado sem perder um tempão contextualizando, explicando, para quem não as viveu, como eram as coisas. Por outro lado, o encantamento da música tem uma certa atemporalidade… há elementos que, imagino, já estavam presentes na idade das pedras, numa tribo batucando em volta do fogo.

Um erro que frequentemente se comete é analisar estes tempos virtuais com ferramentas analógicas. Outros tempos exigem outras ferramentas de análise. É preciso se livrar dos conceitos pré-estabelecidos, encarar o ambiente como se fosse uma folha em branco. Sem medo do novo e sem arrogância de achar que saberemos o que vai acontecer.

Apesar de não haver nada mais impondo o álbum como módulo da produção musical, é possível e viável que um artista continue atrelado a ele. É meu caso. Sempre penso num disco com algo mais do que um apanhado de canções. E não sinto necessidade de deixar de pensar assim.

Hoje há uma pluralidade maior de possibilidades, não precisamos todos rezar pela mesma cartilha. Essa talvez seja a grande diferença.

Na época do disco Várias Variáveis você disse que gravou Gaúcho da Fronteira porque nunca se sentiu tão gaúcho como na época em que morou no Rio de Janeiro.  Insular é nitidamente uma celebração às suas raízes gaúchas, com você estando estabelecido em Porto Alegre. O que mudou? Essa celebração às raízes foi algo premeditado?

Não foi premeditado, aconteceu naturalmente. E é essa naturalidade que eu mais valorizo. Nós, gaúchos, pensamos muito sobre nosso pertencimento… às vezes pensamos mais do que o necessário e perdemos a naturalidade, acabamos ficando oficialistas.

As influências da música regional aparecem porque sou daqui, não é algo que eu tenha buscado racionalmente, pelo registro histórico ou para fazer sociologia musical.

A crítica sempre foi muito severa com os discos dos Engenheiros do Hawaii, principalmente nos anos 90, e você sempre lidou muito bem com isso. Como você lida com o outro lado da moeda hoje, com Insular sendo indicado ao Grammy?

No final das contas não muda muito falarem bem ou mal. Sou meu maior fã e meu maior crítico. Se compor, fazer os arranjos, interpretá-los… não nos servir de espelho, o que servirá?

O trabalho da crítica tem sua importância, mas ela perdeu muito espaço. Um pouco por ter optado pela própria irrelevância, um pouco porque a informação hoje está mais disponível a todos, livre dos filtros das mídias tradicionais.

Mas sempre haverá espaço para quem souber ler os movimentos, fazer as conexões de forma inteligente e original. Sinto falta disso.

Você escreveu no seu blog que tem planos para a comemoração dos 30 anos de lançamento do Longe Demais das Capitais, disco de estreia dos Engenheiros do Hawaii. É um disco que envelheceu mal, na sua opinião? Como vai ser essa comemoração, você já tem ideia do formato?

Eu poderia tocar o disco na íntegra, reproduzindo os arranjos originais. Claro, muita coisa ficou datada, mas eu adoro coisas datadas. É uma das funções da arte, testemunhar seu tempo.

Mas não é isso que vou fazer. Reescrevi parte do material, criei uma suíte onde misturo as músicas do disco entre si e com canções mais recentes. Resultou algo parecido com minhas composições mais longas, cheias de partes.

Esta suíte será um momento do show, aproximadamente 20 minutos. No mais, vão rolar músicas de todas as fases da minha carreira, com ênfase na produção mais recente.

A sua obra é muito homogênea. Há uma nítida evolução nas suas composições e na execução das canções com o passar dos anos, mas você sempre imprimiu seu DNA. Uma canção como Vozes caberia facilmente no Insular, bem como Tudo Está Parado poderia ser uma canção do Ouça o Que Eu Digo, Não Ouça Ninguém. Você tem essa percepção de homogeneidade?

Sim, também percebo. Mais continuidade do que ruptura, apesar das várias curvas no caminho. Sempre achei que meu lance era mais parecido com uma maratona do que corrida de cem metros. Os artistas que admiro também têm esta característica.

No programa Alto Falante, recentemente, você disse que andou passando por uns períodos de não gostar de nada que estava escrevendo. O Insular veio depois de dez anos do seu último disco só de canções inéditas. Esses períodos de “seca criativa” te incomodam?

Já me incomodaram mais. Hoje sou bem mais severo comigo mesmo pra compor. Já escrevi muita coisa e não faz sentido ficar me repetindo. Se é para pendurar mais um quadro nesta parede, ele deve trazer algo novo. Mas o prazer de compor hoje é muito maior.

Neste ano a coletânea Rock Grande do Sul completou 30 anos. Foi a primeira aparição em disco dos Engenheiros do Hawaii. Este disco revelou várias bandas hoje consagradas. Qual é o peso deste disco na sua carreira? Você sente que, na época, os Engenheiros do Hawaii tinham alguma similaridade com as outras bandas do álbum, DeFalla, TNT, Garotos da Rua e Replicantes?

Éramos da mesma geração e mesma cidade, o que deve nos dar uma certa unidade. Mas como eu estava no meio do lance, no olho do furacão, tendo a ver com mais clareza as diferenças e particularidades. TNT e Garotos faziam um rock clássico, vertente que sempre foi forte aqui. DeFalla era a banda das novidades, a cada ano vinham com uma cara diferente. Replicantes eram punk, de certa forma, também um formato clássico. Acho que a gente era a mais difícil de categorizar e entender. No fim, sem querer, acho que o disco criou um painel interessante do que rolava na cena à época.

Uma coletânea como a Rock Grande do Sul hoje em dia faria sentido? Em resumo, a maneira de consumir, interagir e digerir a música mudou muito. Como você vê essas mudanças no mercado musical?

O lado tecnológico melhorou muito, possibilidades se abriram. Mas falta esquina, um lugar onde os projetos se encontrem. Essa foi a virtude da coletânea, reuniu um pessoal. Os discos, sejam LPs ou CDs, organizavam um pouco a cena, determinavam um “tempo” pras coisas acontecerem. Hoje anda tudo caótico, difícil de acompanhar o que está acontecendo. Mas este caos tem algo de positivo: uma maior liberdade.

Mudanças não trazem só coisas boas ou só ruins. Cabe a nós ampliar o que é bom e relativizar o que é ruim.

O disco Insular foi lançado por um selo independente. Porque você optou por um selo independente para este disco, tendo toda a sua obra com os Engenheiros do Hawaii lançada por grandes gravadoras?

As estruturas da indústria fonográfica, no seu período de dominância, dificultavam muito, quase inviabilizavam, um projeto independente. As mudanças na tecnologia diminuíram esta distância. Agora eu me sinto mais ágil, focado só no que acho importante para meu trabalho.

Na contra mão deste consumo digital da música, o vinil está voltando com muita força, é um nicho de mercado bem específico, mas muito lucrativo. É um formato que te agrada?

Ainda ouço minha coleção de LPs, gosto do formato. Mas por enquanto, acho esse revival um lance de butique, gourmet… aí não me interessa muito.

Ano passado, saiu pela Scream & Yell um disco tributo aos Engenheiros do Hawaii chamado Espelho Retrovisor, com várias bandas atuais fazendo releitura de suas canções. Você ouviu esse trabalho? Te agradou ou desagradou?

Jamais desgostaria de uma versão. Qualquer releitura é válida, O que eu achei mais legal foi a diversidade. É uma prova da força do material.

Você já afirmou que não separa o Humberto músico do escritor, e que as duas artes se misturam. Depois de cinco livros lançados, você percebe alguma mudança no seu processo criativo ao escrever uma canção? Afinal, você passou boa parte de sua carreira escrevendo mais em verso. E, de uns bons anos para cá, você tem escrito mais em prosa, não só os livros como o seu blog. Você sente essa diferença?

Começar a publicar meus escritos ajudou muito minha composição musical, me deu a oportunidade de ser menos ansioso e mais rigoroso. A palavra é muito importante na minha música e o ritmo é muito importante na minha escrita, aí rola uma zona nebulosa entre literatura e música. Mas a música é menos cerebral, mais instintiva. Tenho menos controle sobre o compositor do que sobre o escritor.

Os seus livros são todos de crônicas, são textos muito pessoais. Você sente vontade de se aventurar na ficção literária, escrevendo contos ou um romance, para poder contar uma história em terceira pessoa?

Ainda não escrevi nenhuma ficção que merecesse ser lançada. Quem sabe um dia… Ou talvez nunca, pois acho que a vida real já é tão maluca, quase nonsense!

A maioria dos textos dos seus livros são retirados do seu blog e lapidados. Como surge o conceito de cada livro?

Assim como penso que um disco deva ser mais do que uma coleção de canções, acho que um livro de crônicas deve ter algo costurando os fragmentos. Uma estrutura que potencialize a força das partes.

Apesar de muitas crônicas terem origem no blog, geralmente as reescrevo, pois são ambientes muito diferentes.

No livro Mapas do Acaso, você fala sobre fantasmas de nós mesmos que seguem direções opostas às decisões que tomamos em momentos de dúvida. São coisas nas quais você pensa? Como seria o Humberto arquiteto, que rumo seguiria Humberto e os Engenheiros do Hawaii se colocassem bateria em toda a gravação de Terra de Gigantes, e não só aquela virada?

Não penso neles: sinto suas presenças.

Numa lista recente de livros mais vendidos do país, ficou em primeiro lugar um desses livros para colorir. Como você vê o mercado literário hoje? Você relaciona seu sucesso literário à sua fama pregressa na música, ou você tem leitores que não conhecem sua carreira musical?

Sem dúvida, os primeiros leitores vieram atraídos pelo fato de me conheceram como músico, mas com o tempo começaram a separar as coisas e até já encontrei alguns que me leram antes de me ouvir.

Acho que colorir alguns desenhos é uma atividade lúdica interessante, mas de fato é estranho usar a mesma palavra (livro) para isso e para o Grande Sertão, Veredas. hehehehehe Talvez seja só um problema de rótulo.

Sabemos que, na música, você tem seus ídolos, como Pink Floyd, por exemplo. Para escrever, você também tem seus heróis, que te influenciam de alguma maneira?

Há escritores que eu admiro muito, mas é muito diferente da relação que tenho com meus ídolos musicais. Como falei antes, a experiência música é mais misteriosa e intensa.

Você pretende ir ao show do David Gilmour em Porto Alegre? Você gosta deste tipo de evento?

Ir a esses shows é legal quando não senta ao meu lado alguém que queira falar sobre música, perguntando o que estou achando ou qual é a marca da guitarra e a potência do PA!

Nota do editor: o guitarrista do Pink Floyd tem apresentação marcada em dezembro na capital gaúcha.

Para finalizar, com toda essa calamidade política em que vivemos, dólar ultrapassando quatro reais, o futebol sendo cada vez mais corrompido, tanta música vazia no rádio…você continua não conseguindo odiar ninguém?

Sim… esse é meu objetivo. Estou cada vez mais perto. E andar é mais importante do que chegar.