História

Raízes Podres

Texto escrito para o site. Junho de 2023

A humanidade está sempre em busca de suas origens. Tudo bem, talvez nem todo mundo tenha esse ímpeto, de querer saber de onde veio, quem eram seus ancestrais e até mesmo porque determinadas costumes e princípios lhe são caros e outros são desprezados. Mas em muita gente que tem isso sim. Para nós, brasileiros, isso acaba sendo até um pouco mais fácil, pelo Brasil ser um país cuja civilização é jovem, tendo apenas um pouco mais de 500 anos. Ou seja, uma boa parte dos brasileiros tem sua origem na miscigenação de indígenas e africanos escravizados com brancos europeus. Outra parte dos brasileiros não tem tanto essa miscigenação, porque são de famílias europeias, que migraram para o Brasil depois do século XIX. O que eu me pergunto é: o que as pessoas fazem com essas informações.

Mais importante do que conhecer suas origens, é entender o que elas representam e como elas refletem na sua própria existência. Estamos presenciando, de uns anos pra cá, uma avalanche de acontecimentos que não podem ser ignorados. Muito pelo contrário, devem ser vistos, analisados, discutidos, pessoas devem ser responsabilizadas e precisamos entender porque essas coisas estão acontecendo, para que a gente possa fazer alguma coisa para evitar que se repitam de novo, e de novo, e de novo, e de novo… Eu estou falando de um homem que ocupando um cargo de ministro, fez um pronunciamento emulando Goebbels e a retórica nazista, um ex-presidente da república que repudia os povos indígenas, aplaude ditadores responsáveis por mortes e torturas, células de grupos neonazistas organizadas e ativas, influenciadores digitais que acreditam que racismo é uma questão de opinião e que um partido nazista não deveria ser proibido de se articular no Brasil e um número assustador de pessoas que acreditam que ser racista, divulgar notícias falsas e defender o nazismo são atos validados pela liberdade de expressão.

É muito comum a gente ouvir algumas pessoas dizendo que o Brasil é o que é por culpa dos portugueses, afinal de se tivéssemos sido colonizados pelos ingleses, holandeses ou franceses, seríamos um país muito melhor. Será? Jamaicanos, haitianos, argelinos, indianos e muitos outros povos provavelmente vão discordar. O fato é que fomos sim colonizados por portugueses. Isso já diz muito sobre o Brasil atual. Portugal, mesmo quando esteve na dianteira do mundo, conquistando terras por toda parte, sempre foi um país culturalmente atrasado. Atrelado à religião, sempre foi retrógrado, conservador e inculto. Isso desde a época do descobrimento até o período imperial, com Dom Pedro I. Além disso, por conta das grandes dimensões do país, o Brasil recebeu o maior número de negros escravizados do mundo. E o modo como a sociedade sempre lidou com essa questão também é muito reveladora. O negro acabou sendo desprezado, sem ser considerado uma pessoa, mas sim um bicho, uma coisa incômoda que habita à margem. Os governos, apoiados pela minoritária população rica, criaram muitas leis para combater o tráfico e a escravidão, para em seguida fechar os olhos e descumpri as mesmas. Quando a escravidão foi tardiamente abolida, ao invés de se criar políticas para integrar os negros libertos à sociedade, eles foram varridos para os morros e criaram-se sim políticas para indenizar os fazendeiros que perderam sua mão de obra. Ou seja, o Brasil sempre foi elitista, segregador e sempre colocou seus interesses (geralmente escusos) acima do cumprimento das leis.

Um ano depois da Lei Áurea ser assinada, vem o golpe militar que derrubou Dom Pedro II e acabou por instaurar a república no Brasil. Durante toda a República Velha, quem realmente mandava no Brasil era a aristocracia, uma verdadeira bancada ruralista. A mesma classe rica e minoritária que se coloca acima das leis e das pessoas, desde os senhores de engenho das primeiras capitanias hereditárias até os barões do café da República do Café com Leite. Uma aristocracia capaz de manipular governantes através do dinheiro. No início do século XX o Brasil começa a prosperar e se desenvolver. Cada vez mais, jovens filhos de famílias ricas vão estuar na Europa e voltam trazendo novas ideias, hábitos e produtos. Da mesma forma, a imigração de estrangeiros em busca de novas oportunidades também ajuda a desenvolver novos centros urbanos em especial no sul e sudeste do Brasil. E quanto mais esses centros urbanos se desenvolvem, mais arrastam para os arrabaldes e periferias os negros, abandonados à própria sorte, sem oportunidade de estudo ou trabalho digno. 40 anos depois, um novo golpe militar muda o cenário político do Brasil. A chamada Revolução de 1930 nada mais foi do que um golpe de estado que alçou Getúlio Vargas ao poder, quebrando o protagonismo de paulistas e mineiros. A era Vargas chegava para acrescentar um novo ingrediente perigosíssimo a essa elite brasileira conservadora: o fascismo.

O início da década de 1930 foi um dos períodos mais emblemáticos da história. O fim da Primeira Guerra Mundial deixou a Europa devastada, e alguns países seriamente prejudicados. Enquanto isso, a Rússia crescia exponencialmente e espalhava ideias comunistas, depois de ter passado pela grande revolução de 1917. Países devastados pela guerra eram solo fértil para plantar o comunismo, mas também para fazer florescer um ódio cego contra qualquer um, afinal, alguém tinha que ser culpado por tanta desgraça. Foi nesse cenário que Mussolini ascendeu na Itália e Hitler na Alemanha. Hitler e Mussolini eram objetos de admiração de Getúlio Vargas, que passou a ter como um de seus principais objetivos caçar e aniquilar comunistas. Isso tomou proporções diabólicas após a instauração do Estado Novo, em 1937. A mais sanguinária e vil ditadura que o Brasil presenciou. Nessa época o abismo entre classes sociais seguia inabalável. Dado todo o histórico social do Brasil até aqui, conservador, retrógrado e elitista, não é surpresa para ninguém que o partido nazista tivesse uma célula forte por aqui. Mais que uma célula forte, o partido nazista no Brasil era o maior do mundo em número de associados, perdendo apenas para a sede do partido, na Alemanha. O partido tinha células em vários países do mundo, desde os Estados Unidos até o leste europeu e na Argentina. Mas nenhum tinha tantos filiados quanto o Brasil.

O partido nazista foi fundado no Brasil em 1928, na cidade de Timbó, próxima a Blumenau, no estado de Santa Catarina. A imigração de alemães foi muito importante para o sul do Brasil, principalmente no século XIX. Os primeiros alemães chegaram no Rio Grande do Sul e Santa Catarina por volta de 1824. Mas foi no segundo ciclo migratório, logo após o fim da Primeira Guerra Mundial, que alemães vieram para o Brasil, fugindo da crise durante a República de Weimar, e se estabeleceram em São Paulo e Santa Catarina, trazendo na bagagem os ideais nazistas. O partido foi fundado no Brasil em 1928, mas se consolidou mesmo após a chegada de Vargas no poder. O partido nazista apoiou o ataque a São Paulo em 1932 e teve acesso aos primeiros escalões do governo de 1933 em diante, quando Hitler se tornou chanceler da Alemanha. Em 1934 o partido nazista no Brasil tinha quase 3 mil filiados e tinha se espalhado por 76 cidades do Brasil, em estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco, Pará e Paraná. Fora da Alemanha era a maior célula nazista do mundo, na frente até mesmo da Áustria, terra natal de Hitler. Por aqui, os nazistas, naturalmente antissemitas, não tinham tantos judeus para rivalizar, então voltaram seu ódio aos negros, indígenas e miscigenados. O partido não aceitava membros que não fossem comprovadamente alemães natos ou descendentes diretos de alemães. Afinal, a eugenia sempre foi um pilar do nazismo. O partido nazista acabou extinto no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial, quando Vargas foi convencido, contra sua vontade e contra a vontade de generais como Dutra e Góis Monteiro, a se aliar aos Aliados. É sempre bom salientar. Getúlio Vargas simpatizava com Mussolini e Hitler e queria se aliar ao Eixo, já que era ele próprio um ditador fascista no Brasil naquela época. Além disso, o Brasil contava naquela época com o Partido Integralista, os famosos galinhas verdes. Os integralistas eram nacionalistas de extrema direita (a.k.a. fascistas), e o partido nazista, muito excludente e rigoroso, não permitia que qualquer cidadão brasileiro, mesmo tendo ascendência germânica, se juntasse a ele. Assim, muitos descendentes de alemães começaram a migrar para o partido integralista. Partido este que foi mais uma das muitas faces dessa direita torpe e conservadora brasileira.

Apesar de todo o autoritarismo e truculência, a Era Vargas trouxe algum progresso à sociedade brasileira, democratizando um pouco o acesso ás urnas e estabelecendo uma legislação trabalhista, que até então inexistia no país. Nas décadas de 1950 e 1960 o Brasil se desenvolveu bastante, mas ainda muito pouco era feito para diminuir o abismo social e efetivamente integrar a população negra à sociedade. Criou-se assim essa imagem que foi perpetuada ao longo das décadas de negro é pedreiro, porteiro ou bandido. Muita gente diz que o Brasil não é um país racista, justificando que aqui nunca teve nada como o ocorrido nos Estados Unidos, de haver, de fato, uma segregação, banheiro exclusivo para negros, transporte coletivo com assentos marcados e etc… Essas coisas não aconteceram por aqui porque os negros sequer tinham a oportunidade de frequentar restaurantes ou lanchonetes, já a elite branca brasileira, jamais se sujeitou a andar de ônibus ou de bonde. Portanto, essa segregação sempre rolou no Brasil Os restaurantes e lanchonetes que os negros frequentavam, e boa parte ainda frequenta, são os da periferia, onde uma maioria negra já habita, bem como é uma maioria de negros que se faz valer do transporte público para ir trabalhar e ir de um lugar ao outro de maneira geral. E, se hoje em dia, a maior parte da população das favelas e periferias é formada por pessoas pretas, se a maior parte da população carcerária é formada por pessoas pretas, se  a esmagadora maioria da população universitária do Brasil é formada por pessoas brancas, se a esmagadora maioria das pessoas sente um medo involuntário de ser roubada ao ver uma pessoa preta numa rua vazia, se uma família de pessoas pretas num carro, indo para uma festa, em plena luz do dia, é “confundida”, e “confundida” entre muitas aspas, por bandidos e tem seu carro alvejado de balas por militares. Olha, se tudo isso acontece, e você sabe que acontece, o Brasil é sim racista pra caralho!

Voltamos ao início do texto. Ministro emulando Goebbels, youtuber falando que racismo é liberdade de expressão, células neonazistas em atividade no sul do Brasil. E isso continua. Mês passado, em maio de 2023, um deputado do Mato Grosso do Sul discursou citando, e exibindo em suas mãos um exemplar, o livro Mein Kampf, de Adolf Hitler. Por mais que negros, bem como homossexuais, mulheres, indígenas e etc, tenham mais voz hoje em dia, que existam políticas de cotas para negros em empregos públicos e universidades, ainda há muito o que evoluir. E não vai ser ignorando o racismo e manifestações neonazistas e neofascistas que vamos mudar alguma coisa. Eu sei que muitas vezes nos sentimos impotentes frente a essas questões. Até nos indignamos quando vemos as notícias e tal. Mas, o que mais podemos fazer? No mínimo, podemos falar a respeito. A minha maneira é escrevendo este texto, buscando as origens de um comportamento profunda e dolorosamente enraizado na nossa sociedade. Levantando a reflexão de que em pleno 2023 não cabem mais determinadas piadas, por mais que se considerem “ingênuas” ou “só uma piadinha, é humor e não racismo”. Não dá mais. Assim como não dá pra aceitar um deputado empunhando o Mein Kampf no púlpito, assim como não dá pra aceitar que um pastor evangélico diga que homossexuais merecem sofrer e ainda ser aplaudido por toda uma congregação, assim como não dá pra aceitar que um homem negro seja morto por policiais numa câmara de gás improvisada, assim como não dá pra aceitar pessoas defendendo golpe militar. Não dá pra aceitar. Mas é necessário falar sobre tudo isso de maneira crítica e racional, para que a gente consiga, pelo menos, começar a identificar e eliminar cada uma dessas nossas raízes podres.

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A heroína de dois mundo.

Texto escrito para o site. Março de 2023.

Foi um barulho qualquer que a despertou do sono. O sono inconfundivelmente leve que toda mãe tem, sempre atenta a qualquer possível ameaça contra seu bebê. Para ela aquele sono ainda era uma novidade. Havia dado à luz seu primeiro filho apenas doze dias atrás. Levantou da cama num sobressalto e olhou para o seu filho, que dormia tranquilo. Mais uma vez um barulho, e um relincho de cavalo, vindos de fora da casa. Ela olha pela janela e vê cinco homens se aproximando sorrateiramente. A casa é pequena. Ela olha por outras janelas, com cuidado para não ser vista. A pequena casa está parcialmente cercada de soldados imperiais. Justamente o fundo da casa, onde seu cavalo está amarrado, não está sob os olhos de nenhum soldado, que se concentram em meio círculo avançando pela frente. Habilmente ela pega a criança, embala junto a si num pedaço de tecido, mantendo-a segura em seu braço esquerdo. Não mão direita uma espingarda engatilhada, pronta para atirar. Com rapidez impressionante, ela sai pela porta dos fundos, monta em seu cavalo e foge a galope mata adentro. Quando os soldados imperiais se dão conta da fuga, iniciam a perseguição. Por algumas horas, ela cavalga em alta velocidade, atirando em quem quer que ouse se aproximar dela, sempre segurando seu filho junto ao corpo. Finalmente ela consegue despistar os soldados. E permanece por 4 dias na mata, escondida, até conseguir se juntar a seus aliados e reencontrar o seu grande amor.

Por incrível que pareça, o relato acima, mesmo sendo de uma coragem e bravura impressionantes, não foi o ato mais heroico de Anita Garibaldi. Ao longo de sua vida de batalhas, ela mostrou-se uma verdadeira heroína, uma mulher destemida, quase invencível. Quase não. Ela foi invencível sim! Porque homem nenhum conseguiu derrotá-la, ou mantê-la prisioneira por muito tempo.

Ela nasceu Ana Maria de Jesus Ribeiro, no dia 30 de agosto de 1821. Seus pais eram portugueses da região dos Açores. A primeira metade do século XIX foi particularmente dura para os portugueses, que viviam uma crise econômica grave, enquanto a política vivia uma fase conturbada. Os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina receberam muitos portugueses que imigraram para o novo mundo em busca de uma vida melhor. Anita foi a terceira de 10 filhos do casal Bento Ribeiro da Silva e Maria Antonia de Jesus Antunes, todos nascidos em Laguna, Santa Catarina. A pequena Anita era muito ligada ao pai, mesmo ele não parando muito em casa, já que era tropeiro e vivia de conduzir gado do Rio Grande do Sul ao Paraná. Quando tinha 12 para 13 anos de idade, ela ficou órfã de pai, cuja morte não se tem registro exato. A partir de então, a condição financeira da família caiu muito. A mãe de Anita mudou-se com os 10 filhos para o centro de Laguna em busca de trabalho. Lá recebiam frequentemente a visita de Antonio da Silva Ribeiro, irmão de Bento. Anita passou a admirar seu tio Antonio, sempre bem apessoado e se dizendo republicano, a favor da liberdade.

Mas foi justamente o tio Antonio que sugeriu que Anita, aos 14 anos de idade, se casasse com Manuel Duarte de Aguiar, um jovem sapateiro. O casamento foi arranjado para aliviar o custo de vida de dona Maria Antonia, que não dava conta de dar de comer a tantos filhos. Há registros de cartas de Anita a seu tio dizendo que seu casamento era uma farsa, não havia qualquer empatia entre o casal, tanto que nunca tiveram filhos. Pra piorar, seu marido era afeito a tomar uns tragos e se declarava monarquista. Anita se casou em agosto de 1835. Um mês depois de seu casamento, a Revolução Farroupilha foi deflagrada. Dois anos depois, em 1838, Manuel Duarte de Aguiar, alistou-se no exército imperial, para lutar contra os farrapos, e abandonou Anita em Laguna. Nessa época, Anita e seu tio Antonio continuavam muito próximos, e agora tinham em comum os ideais republicanos e o apoio à revolução farroupilha.

O italiano Giuseppe Garibaldi era um revolucionário republicano conhecido na Europa, tinha sido condenado à morte em sua terra natal e já tinha percorrido boa parte do mundo, até acabar no Rio Grande do Sul, se apresentando para ser recrutado pelo exército farroupilha. Por seus conhecimentos como navegante, Garibaldi recebeu de Bento Gonçalves uma carta de corso e, em 1839, após sequestrar um navio do império brasileiro, comandou o ataque a Laguna, para que os gaúchos tivessem um bom lugar para estabelecer como porto marítimo. Após a cidade ter sido facilmente tomada, já que a população apoiava os farrapos, da proa do navio Garibaldi observava a cidade com uma luneta. Foi quando viu, por acaso, Anita andando por uma das ruas e ficou encantado. Um dia depois, durante uma reunião dos republicanos em Laguna, Garibaldi finalmente encontra aquela garota que vira através de sua luneta. A reunião aconteceu justamente na casa de Antonio Ribeiro, tio de Anita. Na ocasião, ela tinha 18 anos e Garibaldi 32. Foi uma paixão mútua e imediata.

Com Garibaldi, Anita se juntou de vez ao exército farroupilha. A batalha naval de Laguna, em novembro de 1839, foi onde Anita brilhou como guerreira pela primeira vez. Além de participar de alguns confrontos, sua bravura foi determinante para a sobrevivências das tropas de Garibaldi. Num pequeno barco, Anita ia e voltava da terra firme, buscando armas e munições e levando para os navios dos farrapos. Ela fez tal travessia mais de 20 vezes, em meio ao fogo cruzado. Já em janeiro de 1840, na batalha de Curitibanos (SC), o exército farroupilha se deu mal e teve que recuar. Anita acabou sendo feita prisioneira dos imperiais. Mas não por muito tempo. Em alguns dias, conseguiu convencer o comandante daquela tropa imperial a permitir que ela andasse pelo campo de batalha para procurar o corpo de seu marido, pois corria o boato que Garibaldi tinha morrido em combate. Anita sentia que Garibaldi estava vivo, mas se aproveitou do boato para realizar uma fuga impressionante. Uma vez livre no campo, apanhou um cavalo e disparou rumo ao rio Canoas. Atravessou o rio a nado, um rio de margens largas, cheio de pedras e de correnteza forte, um rio muito perigoso para se nadar. Mas ela conseguiu! Atravessou o rio e chegou ao Rio Grande do Sul, em um dos acampamentos dos farrapos onde, é claro, reencontrou Garibaldi!

Ainda em 1840, no dia 16 de setembro, nasce Menotti Garibaldi, o primeiro filho de Anita e Giuseppe. Doze dias depois, Anita se recuperava do parto num rancho no município de Mostardas (RS), enquanto Garibaldi estava reunido num acampamento perto dali com os líderes republicanos do Rio Grande do Sul. Foi quando aconteceu a incrível fuga a cavalo de Anita com seu bebê recém-nascido. Depois do ataque a Anita e das intermináveis reuniões com os republicanos, que sempre acabavam em discórdia, Garibaldi começava a perceber que a república riograndense não iria muito longe, tantos eram os conflitos internos e as dificuldades de recursos. Pensando no futuro de seu filho e de Anita, ela pede baixa do exército farroupilha. Bento Gonçalves o dispensa demonstrando gratidão, e Garibaldi, Anita e Menotti se mudam para Montevidéu, no Uruguai, em 1841. Lá se casaram oficialmente e tiveram mais 3 filhos. Em 1848 Garibaldi resolve voltar para a Itália.

Até aquela época, a Itália não era um reino unificado. Na verdade, a história política da Itália, tal qual a maioria dos países europeus, é uma baita confusão. Uma terra que já passou pelas mãos de vários reinos e povos, e era dividida em vários pequenos reinados.. Naquela época, pós napoleônica, a Itália vivia sob o trono do Papa Pio IX em Roma, já Piemonte, norte da Itália, era um reino à parte, e a região sul, da Sicília, vivia em eterno conflito. Porém, em toda a parte, crescia no povo italiano um sentimento nacionalista e o desejo por uma unificação, muito dessas ideias tinha inspiração nas novas repúblicas das Américas. É para esse vespeiro que Garibaldi resolve voltar com a sua família, para ajudar a lutar pela unificação e pela república da Itália. E não é que, com a ajuda de Garibaldi e Anita, em fevereiro de 1849 o papa Pio IX é deposto e é proclamada a República de Roma? Ainda tinha muita luta pela frente, mas aquele foi o pontapé inicial para a unificação da Itália, que aconteceria anos depois. Mas acontece que, enquanto a república era proclamada em Roma, o rei de Piemonte mete os pés pelas mãos e, num péssimo timing, declara guerra ao reino da Áustria. Enquanto os austríacos invadem o norte da Itália, os franceses aproveitam para avançar também e tirar uma casquinha, se dizendo defensores do papa que fora deposto. Por fim, depois de muitas batalhas contra os franceses e austríacos, as tropas comandadas por Garibaldi são expulsas de Roma, a república é desfeita e os italianos republicanos tem que meter sebo nas canelas e fugir.

Claro que Anita esteve o tempo todo batalhando ao lado de Garibaldi. Mesmo grávida. Em julho de 1849, Anita estava grávida de seu quinto filho. Durante a fuga, rumando para San Marino, ela adoeceu. Foi diagnosticada com febre tifoide. No dia 4 de agosto de 1849, Anita Garibaldi, que nunca fora vencida por homem nenhum, sucumbiu à febre e acabou morrendo numa fazendo próxima a cidade de Ravena, nordeste da Itália. Até hoje Anita Garibaldi simboliza a liberdade e a luta por ideais de justiça e igualdade. No centro de Roma, próximo de onde o corpo de Anita está sepultado, se levanta um belo monumento: uma estátua de Anita Garibaldi montada em seu cavalo, bebê numa mão, espingarda na outra, retratando a cena que abriu este texto, e que expressa tão bem sua mais justa alcunha: A Heroína de Dois Mundos.

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A marcha-ré da História.

Texto publicado em outubro de 2022 em minhas redes sociais.

Em junho de 2004 o Papa João Paulo II foi a público pedir perdão à humanidade pelos excessos cometidos pela igreja católica durante o período em que vigorou a infame Santa Inquisição. No caso, este período abrange sete séculos! A Inquisição foi criada pelo Papa Gregório IX em 1233 e durou até meados de1820, principalmente nas cortes da Espanha e Portugal. Por excessos, entenda-se perseguição, tortura, antissemitismo e mortes brutais como enforcamento e ser queimado vivo numa fogueira. Não existe uma estimativa de quanto a Inquisição matou , mas estudos indicam que só a Inquisição Espanhola, notoriamente a mais atuante e cruel, entre 1478 e 1834 matou mais de 300 mil pessoas. Portanto, não é muito provável que o número de vítimas tenha ultrapassado um milhão em toda a Europa e Américas.

Antes da Inquisição, as Cruzadas já promoveram um morticínio enorme. Mas por quê tantas mortes? A resposta mais rápida é que foi tudo em nome de Deus. Mas a gente sabe que não é bem assim. No século V o império romano já dava seus últimos suspiros, deixando um vazio de poder, principalmente em Roma. A igreja católica se aproveitou disso e tomou as rédeas da governança. Enriqueceu rapidamente e passou a ter influência cada vez maior entre os diversos reinos da Europa ocidental. Se distanciando cada vez mais dos verdadeiros propósitos cristãos, a igreja passou a querer ter mais e mais poder. As cruzadas foram uma desculpa da igreja para obter mais territórios e ter maior influência no mundo. Se você quer tentar entender todos os conflitos do oriente médio, as cruzadas e a conquista da Terra Santa (Jerusalém) é um bom ponto de partida. Da mesma maneira, a Inquisição serviu como tropa de choque de retaliação a quem quer que fosse contrário aos ideias da igreja católica.

A Reforma Protestante, encabeçada por Martinho Lutero, foi um baque para o catolicismo, que reagiu com ferocidade. Foi quando a Inquisição intensificou a perseguição aos que eram considerados hereges. Também foi nessa época que foi criada a Companhia de Jesus, pelo bispo Inácio de Loyola. Os membros dessa ordem, os jesuítas, foram os responsáveis por boa parte da cristianização dos povos originários das Américas. Os jesuítas eram a tropa de elite do catolicismo, homens devotos, que não respondiam a nenhum rei ou governador, mas somente ao Papa. Esse movimento da igreja católica ficou conhecido como Contra Reforma, e foi muito responsável pelo atraso sócio cultural tanto das cortes europeias, em especial da península ibérica, como também das colônias no Novo Mundo. Afinal, uma das premissas propostas por Martinho Lutero era que a bíblia sagrada fosse acessível a todos, que todos pudessem lê-la. Para tanto, estimulava a alfabetização dos povos. Já o catolicismo era radicalmente contra isso. Preferia manter o povo analfabeto, como se dissesse “Você não precisa ler. Deixa que eu leio e te conto o que está escrito.”. Afinal, assim fica bem mais fácil manipular as pessoas.

Isso tudo é muito significativo para explicar o Brasil de hoje. Até a chegada da família real em 1808, fugindo do Napoleão, o Brasil não tinha nenhuma escola ou universidade. As poucas pessoas que aprendiam a ler e escrever, eram ensinadas em casa, em sua maioria pessoas ligadas à igreja. Mesmo depois da chegada de Dom João VI e sua patota no Rio de Janeiro, a educação pouco evoluiu. Até porque a simples venda de livros era proibida, principalmente livros que pudessem inflamar quaisquer ideias iluministas. Afinal, a revolução francesa assustou todos os reis do mundo, sem falar que os Estados Unidos, àquela altura, já era um país livre e vivendo uma república. Quando a corte portuguesa voltou para Lisboa em 1821, praticamente 90% da população do Brasil era analfabeta, sem contar que mais da metade dessa população era de negros escravos. Dom Pedro II, sabidamente um intelectual, incentivou a criação de escolas e universidades, mas de maneira geral, a educação era toda ligada a padres e freiras. Ainda seguíamos atrelados incondicionalmente ao clero.

O golpe militar de 15 de novembro de 1889, que culminou na proclamação da república, ao elaborar a constituição de 1891, pela primeira vez coloca o Brasil como um estado laico. Sim, finalmente estávamos livres da influência da igreja na política. Oficialmente, era o que deveria acontecer. Na prática, a igreja continuou influenciando governo após governo. Isso não é só aqui no Brasil não. Praticamente toda a América Latina é essencialmente católica e bispos e padres são formadores de opinião muito influentes nas sociedades.

A religião é uma das coisas mais paradoxais da humanidade. Da mesma maneira que alimenta a alma das pessoas com paz, espiritualidade e compaixão, também envenena a sociedade com dogmas moralistas e castradores. Mas, enfim, são escolhas, que cada um faz, de acordo com os seus princípios e crenças. Justamente por isso, ela não deveria se misturar com a política. Porque se as duas coisas se misturam, o estado vai querer dizer o que eu, que não tenho crença em determinada religião, devo fazer ou deixar de fazer por princípios dogmáticos e não puramente sociais. Hoje em dia, as coisas se tornam ainda mais turbulentas, pois temos uma nova espécie de religioso, os evangélicos conservadores. Alguns deles estão no poder legislativo, formando a bancada da bíblia.

Mas se a gente pensar racionalmente, fica realmente difícil dissociar política de religião, porque tudo é política. Futebol é política, música é política, jornalismo é política. Porém, uma coisa é fazer política, outra coisa é exercer poder. Fazer política é debater ideias com a sociedade em geral, através de representantes, como padres e pastores, que não ocupam cargos públicos, mas tem representatividade, assim como sindicalistas, artistas famosos e etc. Exercer poder é negar que uma menina de onze anos de idade, que foi estuprada e engravidou, faça um aborto, porque considera o aborto imoral e anticristão. Exercer poder é normalizar a violência contra homossexuais, pois eles são considerados impuros, e estabelecer que a única formatação possível de uma família é entre um homem e uma mulher. Exercer poder é vincular religiões de origens africanas ao maligno, demonizando-as.

Já passou da hora da religião ser separada da política, no sentido de exercer esse poder castrador e vil. Também já passou da hora de políticos que se amparam na religião para conseguir popularidade serem extirpados da vida pública! Eu me recuso a pactuar com um governo que se faz valer de slogans fascistas e que colocam Deus acima de todos. Deus este, pelo qual não tenho nenhuma simpatia, afinal, é um deus que valida a violência e a intolerância. Não sou contra a religiosidade e espiritualidade de cada individuo, muito pelo contrário. Acho louvável. Mas, dada a pluralidade de crenças e divindades, há de se ter respeito e tolerância com as diferente religiosidades. Assim, cenas lamentáveis como as vistas em Aparecida poderiam ser evitadas. Já as religiões como instituições, que visam ter influência e poder perante o estado, que não pagam impostos, lucram quantias obscenas e querem fazer parte do governo, essas devem ser combatidas. O exemplo está diante de nós. Um governo guiado pela ré-ligião, assim mesmo, de marcha ré. Um governo que, se permanecer no poder, daqui pra frente, vai ser só pra trás. E, como acabamos de ver, o passado com a religião no comando não foi nada bom para a humanidade.

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O Fascismo bate à porta.

Texto publicado em outubro de 2022 em minhas redes sociais.

No dia 2 de agosto deste ano, um homem de 39 anos entrou na biblioteca Mário de Andrade, no centro de São Paulo, pegou alguns livros, entre eles o infame Mein Kampf, de Adolf Hitler, e circulou pela biblioteca, sem preocupação nenhuma de esconder os livros que carregava, até encontrar um lugar para se sentar e começar sua leitura. Enquanto circulava pela biblioteca, fez alguns comentários racistas contra algumas das pessoas que estavam ali estudando. Ao ser confrontado, levantou a voz. Disse que não gostava mesmo de negros e nem de “viados”. Chegou a fazer a saudação nazista enquanto continuava a proferir as maiores barbaridades com orgulho. A polícia foi acionada e o homem acabou sendo detido.

O que impressiona neste ocorrido é que o homem em questão não tem nenhum receio ao demonstrar sua ideologia distorcida. O mesmo tipo de comportamento tem sido registrado ao longo dos últimos anos com uma frequência alarmante. Foram muitos os vídeos que circularam na internet durante a pandemia de entregadores negros sendo destratados e humilhados por brancos, por exemplo. Claro, alguém pode argumentar que o racismo sempre existiu, a diferença é que agora tem celular com câmera e redes sociais para registrar e divulgar isso. De fato. Mas vai além disso. Até meados da década de 2010, por mais que esses casos ocorressem, não se via nas pessoas esse orgulho. Quem era flagrado cometendo racismo procurava esconder sua identidade, evitava ser filmado, tentava cobrir o rosto. Atualmente, essas pessoas parecem fazer questão de serem vistas.

Se o racismo sempre existiu, por que dar atenção a essas notícias? É porque elas são um dos claros sinais de que o Brasil está se encaminhando para um período de retrocesso, reacionarismo, violência, cerceamento de liberdades e discriminação. Enfim, um regime fascista. Para entender esses sinais, precisamos entender minimamente o que é o fascismo.

Na Roma Antiga o símbolo dos magistrados oficiais de justiça, ou seja os juízes, tinham como insígnia um machado cujo corpo eram várias varetas de madeira, ou feixes, amarrados juntos, e acima atada a este corpo uma lâmina de machado. Essa simbologia representava que uma vareta sozinha pode ser quebrada facilmente, mas muitas varetas juntas tornam-se muito mais difícil de serem quebradas e a lâmina do machado atada às varetas representava o rigor da lei. No início do século XX, logo após o fim da Primeira Guerra Mundial, a Itália vivia uma situação dificílima. Mesmo tendo lutado ao lado dos vencedores, ela foi ignorada na hora da partilha de territórios e ganhos da guerra. Começaram a se reunir então grupos de militares, soldados que lutaram na guerra, para insurgirem contra o avanço do bolchevismo e a favor do nacionalismo. O principal líder deste grupo era Benito Mussolini. Ele organizou esses grupos num partido e utilizou a simbologia romana do machado feito de feixes de madeira. Feixe em italiano é fascio, que no plural fica fasci. Assim nasceu o Partito Nazionale Fascista.

Mas depois disso, o termo fascismo se tornou muito mais plural e passou a designar todo regime político autoritário, militarizado, conservador e truculento. Assim, o nazismo é considerado um regime fascista, assim como foi o governo de Franco na Espanha, de Salazar em Portugal, de Pinochet no Chile e de Getúlio Vargas, durante o Estado Novo, no Brasil. Ah, mas então os regimes de Stalin, Mao Tse Tung, Fidel Castro e etc também eram fascistas! Não exatamente. Foram sim regimes ditatoriais, autoritários e igualmente truculentos, é verdade. O que os difere dos regimes fascistas são algumas diferenças políticas. As ditaduras de esquerda, como as citadas, não se fazem valer de apoio de religiões, promovem uma distribuição de renda, ainda que injusta e desigual, e realizam um aparelhamento total do estado no setor industrial e de serviços. Já o fascismo se faz valer de valores tradicionais e religiosos, promove a meritocracia como justificativa de sua superioridade e cultua a propriedade privada, mas mantém todos os setores da economia sob suas rédeas curtas. Veja bem, não existe melhor ou pior. Ambos são péssimos. Mas o fascismo tem algumas características específicas que são realmente perigosas, e estão batendo na nossa porta.

O fascismo usa o passado para inspirar um nacionalismo exagerado. Aquele pensamento de que no passado é que era bom, nos tempos áureos! Mas que passado era esse? Mussolini, por exemplo, exaltava o império romano como época gloriosa da Itália, sendo que a Itália nem existia naquela época. O império romano e a criação da Itália enquanto país nada tem a ver um com o outro, a não ser um pequeno território geográfico. Hitler exaltava justamente os povos germânicos que combateram os romanos, sendo que boa parte da Alemanha há menos de meio século antes era, em sua grande parte, território do império austro-húngaro. Mas, de qualquer forma, isso sempre funciona. Aqui no Brasil, não tem sido necessário ir tão longe no passado. Mas com certeza, você já ouviu alguém dizendo que no tempo da ditadura militar o Brasil era melhor. Eu mesmo já ouvi gente dizendo que o governo militar torturava e matava de vez em quando sim. Mas só o fazia com quem merecia, quem era vagabundo e comunista. Claro que isso é uma mentira nojenta. Mas ainda que não fosse, não há humanidade nenhuma numa fala dessas, afinal tortura e assassinato não devem ser tolerados em quaisquer circunstâncias.

Mas este é outro ponto do fascismo. O culto a violência. O fascismo é essencialmente sobre superioridade. E que maneira melhor de se demonstrar superioridade do que massacrando seu oponente? Por isso, todo fascismo tende a ser militarizado e incentiva o aprendizado da luta já na infância. Incentiva seus seguidores a possuírem armas e identificar, e abater se possível, seus inimigos. A maior prova disso foi a Juventude Hitlerista e a Liga das Moças Alemãs, destacamentos paramilitares que recrutavam, treinavam e armavam jovens e mulheres. Mas tudo na vida é questão de parâmetros. Se o fascismo prima pela superioridade, ele precisa ser superior a alguém. Aqui podemos facilmente voltar ao início deste texto. Essa sanha por superioridade leva à discriminação de minorias. Uma vez que o fascismo está sempre atrelado ao tradicionalismo, conservadorismo e dogmas religiosos, obviamente negros, homossexuais, judeus, mulheres e etc , não estarão em boas mãos. E quem apoia regime fascista se sente no direito de externar esse tipo de sentimento, com orgulho de ser superior, como se fazer comentários racistas fosse seu direito, um exercício da liberdade de expressão. O que nos leva a outro ponto importante a se conhecer do fascismo.

O inimigo. Ou os inimigos. O fascismo se caracteriza também por criar em torno deste nacionalismo maravilhoso, que desagua na superioridade nacional, e nessa necessidade de se armar, um clima de tensão e perigo constante, de ameaça. Precisamos combater o inimigo! Para os nazistas eram os judeus e os comunistas, para Mussolini eram os traidores da Primeira Guerra, França e Inglaterra, que não deram à Itália o que lhe era de direito, além, é claro, de combater os comunistas. Aqui cabe um parênteses. Por que todo mundo odiava tanto os comunistas? Perceba que, nessa época, pós Primeira Guerra, a Rússia acabara de fazer a Revolução de 1917, e os ideais de russos, em especial no que dizia respeito à classe média-baixa de trabalhadores, assustavam as elites aristocratas. Lembrando que o fascismo preza a propriedade privada e mantém laços estreitos com o empresariado, de maneira geral. Basta ver, como exemplo, a lista de grandes empresas alemãs que apoiaram e se beneficiaram com o nazismo. Fecha parênteses. O inimigo pode ser qualquer um. Ainda que hoje o comunismo já esteja liquidado como forma efetiva de governo, ele ainda é um fantasma que assombra o Brasil, por exemplo. Mas por aqui outros inimigos têm sido elencados. Entre eles estão a mídia e o Supremo Tribunal Federal.

Outro fator importante para o fascismo é ter a frente uma figura carismática, que vai falar ao povo e servir como exemplo. Não precisa ser uma pessoa muito inteligente ou culta. Mas precisa ser imponente, ter convicção e ser destemido. Cria-se em torno dessa pessoa uma tal aura de poder, que ele passa a ser admirado, torna-se um… mito. Hitler, por exemplo, não era um homem brilhante. Pelo contrário. Foi muito rejeitado até alcançar a chancelaria da Alemanha. Tentou ser pintor, arquiteto e sempre foi rejeitado nas escolas superiores. Até no exército ele foi rejeitado, por ser muito baixo. Também era pouco afeito á leitura e escrevia mal. Diz-se que seu livro, Mein Kampf, teve que ser todo reescrito por outras pessoas para poder ser compreendido. Mas era um orador insuperável, tinha boa postura e falava o que as pessoas maltratadas pela crise econômica e pela vergonha da derrota na guerra queriam ouvir. E mais. Junto com a promessa de uma Alemanha melhor, com um governo sem corrupção, Hitler injetava nas pessoas o discurso de ódios aos judeus. Discurso esse que era aceito, considerado normal, e a violência contra os judeus não só era tolerada, como incentivada por muitos alemães.

Tá. Depois de tudo isso, vamos ao que realmente interessa neste texto. Os sinais. De tudo que você leu até agora, em vários momentos você deve ter lembrado de uma ou outra fala ou situação acontecidas no governo Bolsonaro até agora. Se não lembrou de nenhuma, eu vou te lembrar de algumas. O fascismo se faz valer de valores tradicionais. O lema do partido nazista era Deutschland über alles, que significa Alemanha acima de tudo. O slogan da campanha de Bolsonaro em 2018 era Brasil acima de tudo, Deus acima de todos. O lema Deus, Pátria e Família, usado atualmente por Bolsonaro, era o lema do regime salazarista em Portugal. O governo Bolsonaro exalta o Golpe Militar de 1964, cultua torturadores e, até hoje, Bolsonaro nunca veio a público se retratar sobre sua fala num programa de TV nos anos 90, em que disse que a ditadura matou pouco. Se não se retratou até agora, é porque ainda acredita nisso.

Sobre o culto à violência, militarização e exaltação ás armas de fogo, o governo Bolsonaro é uma verdadeira festa. Além de elogiar torturador, é um governo que praticamente lierou o acesso a armas de fogo para qualquer pessoa. O exército já disse que não tem capacidade para analisar cada pedido de CAC que recebe, já está provado que criminosos estão tirando a licença de CAC e comprando armas para o crime organizado. O número de mortes por arma de fogo disparou (com o perdão do jogo de palavras), bem como o de violência doméstica. E aqui cabe outro ponto importante. O presidente justifica que todo cidadão deve ter uma arma para proteger a sua liberdade, porque a liberdade vale mais que a sua própria vida. Perceba que ele não diz que é para o cidadão proteger seus bens, sua casa ou sua família. É sua liberdade. Isso significa que se um governo do qual você é contra entrar no poder, ainda que democraticamente, o governo atual pode fazer você acreditar que quem está no poder vai acabar com a sua liberdade. Neste caso, ainda bem que você tem uma arma, não é? E o caos estará instaurado.

Quanto a criar inimigos, já pudemos ver que Bolsonaro é pródigo! Já culpou ONGs pelos incêndios na Amazônia, se coloca ainda hoje como paladino da Covid-19, sendo único chefe de estado que teve a coragem de se impor contra as políticas de contenção, todas equivocadas, é claro! Desta forma, transformou a ciência e o cuidado com a vida das pessoas em seus inimigos. Preciso falar de vacina? Acho que não, né… Até porque os inimigos mais emblemáticos do governo Bolsonaro são a mídia e o STF. Para Bolsonaro, 99% da imprensa está contra ele, e contra o Brasil (aquele 1% que é vagabundo, como diria a canção, eu prefiro não citar). Mas isso é perigosíssimo, faz com que seus apoiadores se informem por redes sociais, onde notícias falsas são noticiadas e notícias verdadeiras são desacreditadas, colocadas como parte de um verdadeiro complô. Colocar toda a mídia como inimiga nos deixa a um espaço perigosamente curto da censura. Da mesma maneira, ser combativo, insolente até, em relação ao STF é igualmente perigoso para a democracia. Pois serve de justificativa barata para que, mais uma vez no poder, Bolsonaro possa aparelhar de vez o judiciário ao seu favor. Aí, cem anos de sigilo vai ser coisa pouca. Aliás, vale mencionar: sabe que presidente aparelhou o STF logo que assumiu o cargo, para poder fazer o que bem entendesse? Sim, ele mesmo! Hugo Chavez.

Estes são só alguns dos sinais de que estamos nos encaminhando para um governo autocrata e fascista. Afinal, lembre-se que nenhum regime fascista surgiu do dia para a noite, eles foram todos construídos á partir de oportunidades, situações socioeconômicas e muito discurso repetido à exaustão. E todos os regimes fascistas acabaram em mortes, censura, cerceamento de liberdades e desigualdade para o povo. A maioria das pessoas com quem converso tem muitas reservas quanto ao ex-presidente Lula. Todos os escândalos de corrupção realmente aconteceram e foram lamentáveis. Mas não podemos esquecer que, além de o atual governo também estar atolado em corrupção, que é cegamente negada por seus seguidores e blindada por sigilos centenários e aparelhamento na polícia federal, a conjuntura política é muito diferente. A grande maioria dos participantes daquele cenário de escândalos está preso ou fora de cargos públicos. Além do mais, a própria tecnologia e consciência política das pessoas evoluiu muito. É muito mais difícil encobrir escândalos e a população é muito mais atuante denunciando e cobrando a classe política. O antipetismo vigente é um câncer. Está cegando e anestesiando as pessoas. Faz com que não se perceba que escolher entre dois políticos com histórico de corrupção, a escolha mais lógica é o candidato que, em momento nenhum ameaçou a democracia, e não o candidato que em toda a sua carreira política, dá sinais de autoritarismo e fascismo. Ficou célebre a seguinte frase do pensador, escritor e dramaturgo Bertolt Brecht: “A cadela do fascismo está sempre no cio.”. Cabe a nós não deixar que ela cruze e tenha filhotes.

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Uma história do Peru!

Texto publicado no Diário do Sudoeste em maio de 2020.

A verdade é dura, muitas vezes difícil de engolir.  Mas ela há de prevalecer! Por isso já quero começar este texto com uma dessas duras verdades, que deixarão o caminho livre e sem dúvidas ou desconfianças, para que eu possa falar sobre o um dos episódios mais sangrentos e reveladores da história. Você sabe que o nosso planeta teve, espalhado por vários pontos distantes entre si, povos que desenvolveram civilizações incríveis. E, mesmo sem que haja nenhum vestígio de que esses povos tenham se comunicado, há várias semelhanças entre eles. Uma delas é a presença de pirâmides como templos religiosos. Há pirâmides no Egito, bem como nas civilizações Maia, Asteca e Inca. Essa coincidência é explicada por uma forte corrente teórica que diz que extraterrestres visitaram estes povos e os ajudaram a construir tais edificações, que, além de tudo era um tipo de engenharia complexa para ser concebida por povos tão primitivos. E esta é a grande verdade que eu venho lhes trazer: Esse papo de ETs construindo pirâmides é uma baita duma conversa fiada.  Já está provado que as pirâmides de todas as civilizações citadas, foram concebidas, planejadas e executadas por seres humanos, que tinham, sim senhor, conhecimentos avançados de engenharia, astronomia, matemática e etc, mesmo em tempos tão remotos.

Um desses povos, talvez um dos mais impressionantes, são nossos vizinhos, os Incas. Infelizmente, conhecemos muito pouco da origem dos povos nativos da América. Estudos apontam que o ser humano já habitava todo o continente americano há pelo menos 12 mil anos. De lá pra cá, essa turma se espalhou, e grupos foram se adaptando e se estabelecendo nos mais diferentes lugares. Em especial grandes populações se desenvolveram muito na chamada Mesoamérica, região onde hoje fica o sul dos Estados Unidos, o México, Guatemala, El Salvador, Cuba e Honduras. Ali surgiram os Maia e, posteriormente, os Asteca. Possivelmente, algumas tribos já praticantes da cultura politeísta, de algumas técnicas agrícolas e senso de organização social, migraram para o sul e se estabeleceram na rica região dos Andes. Ali, em um tempo consideravelmente curto desenvolveram uma civilização incrível, organizada, rica e desenvolvida. Os Tahuantinsuyu.

Apesar de não ser esta a palavra ideal, fica mais fácil de se entender dizendo que o povo Tahuantinsuyu era um império que englobava  várias tribos diferentes em um território vastíssimo, praticamente toda a costa da América do Sul. Em termos de tamanho territorial, eles foram o maior império indígena de toda a América. Como eu disse, a palavra império não é a ideal para explicar este povo. Na língua quéchua, Tahuantinsuyu significa “as quatro direções”, o que já demonstra o conceito de expansão deles. Mas funcionava mais como uma confederação. Existia uma cidade-estado, Cuzco (que está lá até hoje) e havia um soberano, uma espécie de líder espiritual, um sacerdote. Mas cada região mantinha sua língua e sua cultura, apenas era identificada como parte dos Tahuantinsuyu porque pagavam impostos a cidade-estado. Ah, sim, o líder deles recebia o título de Sapa Inka, que significa Grande Governante. Aí, quando os espanhóis chegaram por lá, acharam muito difícil falar Tahuantinsuyu e ouviam falar de inca pra cá, inca pra lá… e acabaram chamando todo mundo de inca.

Apesar de haver povos milenares na região dos Andes, os Incas mesmo, se estabeleceram como conhecemos no início do século XV, por volta de 1430. Em um século construíram uma civilização incrível, com estradas pavimentadas, aquedutos, agricultura com técnicas impressionantes de curva de nível e irrigação e cidades com prédios feitos de pedra muito resistentes, para aguentar os frequentes terremotos que atingem a região com certa frequência até hoje. Na virada dos séculos XV para XVI, os Incas vivam seu apogeu sob o comando do Sapa Inka Huayna Capac. A região que hoje compreende a Bolívia, o Peru e Equador era riquíssima em ouro e prata, e os Incas haviam dominado o manuseio desses metais, que eram usados para confecção de armas, utensílios e adornos. Tudo ia muito bem.

Enquanto isso, na Europa, o rei espanhol Fernando de Aragão foi convencido a financiar uma expedição chefiada por Cristóvão Colombo para tentar chegar na índia indo reto a oeste toda vida, ao invés de dar a volta na África. Em 1492 Colombo chegou nas Bahamas. Anos mais tarde Américo Vespúcio navega da América Central até a costa do Brasil e conclui estar diante de um novo continente, que acaba sendo batizado com o seu nome. Em 1513 o espanhol Vasco Núñez de Balboa cruza o a pé o estreito do Panamá e se depara com um novo oceano, ainda desconhecido, e que seria oficialmente descoberto pelo português Fernão de Magalhães numa jornada épica que eu já contei aqui, num texto publicado em setembro do ano passado. Em 1519, Nuñez de Balboa é morto no Panamá por Francisco Pizarro, o truculento explorador espanhol que iria derrubar o império Inca.

Os primeiros europeus, portugueses e espanhóis, que se estabeleceram na costa brasileira, em especial entre os atuais estados de São Paulo e Santa Catarina, já sabiam que havia uma tribo muito numerosa e riquíssima em pedras preciosas, que viviam em montanhas geladas a oeste. Muitos deles tentaram chegar lá, mas falharam. Mas foram avançando oeste adentro, criando vilarejos como Assunción, atual capital do Paraguai, e um ou outro espanhol conseguiu ter contato com algumas tribos Incas próximas a Potosí, na atual Bolívia. Da mesma forma, Pizarro chegou a conduzir uma expedição em 1527 que chegou até a atual Colômbia, onde os espanhóis tiveram contato com outras tribos, também integrantes do império Inca. Esse foi o começo do fim. Os espanhóis levaram até os Incas a varíola e a gripe. Doenças que eles nunca viram antes e não tinham nenhuma imunidade. Muitos morreram. Muitos mesmo, incluindo o Sapa Inka Huayna Capac. Seus dois filhos, Huáscar e Atahualpa deram início a uma guerra civil que dividiu e enfraqueceu o império. Foi neste cenário, em 1532, que Pizarro finalmente chegou a Cuzco. Atahualpa parecia ter vencido a guerra e ocupava o posto de Sapa Inka quando Pizarro o chamou para uma conversinha amigável. Que era uma armadilha, claro. Atahualpa foi preso e executado pouco tempo depois.

Por fim, os espanhóis tomaram as duas principais cidades dos Incas, Cuzco e Quito, atual capital do Equador, sugaram toas as riquezas inundando a Europa com ouro e prata andinos, escravizaram e mataram os nativos e o resto é história. Entretanto a força dos Incas ainda é conhecida e resiste. A cidade de Machu Picchu ainda está lá para ser visitada e é uma das sete maravilhas do mundo, o quéchua ainda é um idioma falado e considerado oficial no Peru, Equador e Bolívia e ainda há descendentes diretos daqueles povos vivendo naquela região até hoje, mantendo vivas muitas das suas tradições. Agora me fala. Um povo que passou tudo o que passou e tá aí até hoje, construiu tanta coisa… você acha que essa turma ia depender de uns ETs mequetrefes pra construir uma pirâmide?

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O indispensável legado de André Rebouças.

Escrito para o site. Fevereiro de 2023.

Já passava das onze horas da noite e a festa seguia muito animada. Era um baile muito aguardado, e o mais requintado já realizado na história do império brasileiro. Àquela altura, todos já haviam jantado e a pista de dança estava movimentadíssima. A competente orquestra tocava polcas e valsas e as mais de mil pessoas presentes dançavam e bebiam champanhe e vinho.  É quando um dos conselheiros do imperador Dom Pedro II, um homem brilhante, engenheiro e inventor, poliglota e muito bem educado, se aproxima gentilmente de uma dama que estava sentada e a convida para dançar. Ela o olha com desdém e recusa o convite. Uma cena embaraçosa. Porém, a princesa Isabel, filha do imperador, observava a cena. Ela logo se levanta, vai até o cavalheiro rejeitado e os dois dançam alegremente pelo salão, sob o olhar incrédulo da dama que o rejeitou. Tal ama, ninguém sabe ao certo quem era, mas era uma mulher branca. Já o cavalheiro era ninguém menos que André Rebouças, amigo íntimo de Dom Pedro II, da princesa Isabel e do Conde D’Eu, além de ser um dos raros homens negros bem sucedidos da sociedade brasileira.

Vale dizer que o baile em questão era o Baile da Ilha Fiscal, também conhecido como último baile do império. Ele aconteceu no dia 9 de novembro de 1889, seis dias antes do golpe militar que derrubaria a monarquia e iniciaria a república no Brasil. André Rebouças era mais do que monarquista, era realmente amigo do imperador e da princesa. Por isso mesmo, quando a monarquia caiu, ele fez questão de se auto exilar e partiu no mesmo navio da família real rumo à Europa, para nunca mais voltar ao Brasil. Mas ao longo de sua vida, antes dessa partia, fez muito pelo país. Além de um engenheiro perfeccionista e eficiente, foi peça indispensável para o movimento abolicionista, ao lado de José do Patrocínio e Joaquim Nabuco.

André Pinto Rebouças nasceu na vila de Cachoeira, na Bahia, no dia 19 de janeiro de 1938. Era filho do casal Antônio Pereira Rebouças e de Carolina Pinto Rebouças. A família Rebouças já tinha um passado glorioso. O pai de André, Antônio Rebouças, era um advogado de muito prestígio, foi deputado e chegou a frequentar o círculo de amizades de Dom Pedro II. O tio de André, irmão de Antônio também foi um homem importante. O Dr. Manuel Maurício Rebouças, médico e catedrático da Faculdade de Medicina da Bahia. Antônio e Manuel eram filhos de uma escrava alforriada com um alfaiate português. Eram negros, mas graças à boa condição do pai, puderam estudar e se destacar em suas profissões. Portanto, André cresceu numa família com uma vida econômica confortável e com oportunidade e acesso ao estudo.

Com oito anos de idade, André mudou-se com a família para o Rio de Janeiro. Aos 16 ingressou na Escola Militar. Foi onde conseguiu, com altas notas e excelente desempenho, formar-se bacharel em Ciências Físicas e Matemáticas pela Escola Militar da Praia Vermelha em 1859, com 21 anos de idade. Tornou-se assim engenheiro militar. Graças ao seu desempenho acima da média, conseguiu participar de uma espécie de intercâmbio fornecido pela Escola Militar. Entre 1861 e 1862, ele conheceu e pode estudar engenharia em cidades como Paris, Londres, Liverpool e Manchester. O imperador Dom Pedro II, que era um homem ligado às ciências, estava sempre em contato com os principais intelectuais da Escola Militar. Foi quando conheceu e se impressionou com o currículo de André Rebouças.

Em 1963 já rolava um clima de animosidade entre o Brasil e o Paraguai. Temendo um conflito em terras brasileiras, Dom Pedro II designou especificamente o André e seu irmão, Antônio Rebouças Filho, que também era engenheiro, para vistoriar e fazer melhorias, se necessário, nas fortificações militares de todo o sul do Brasil. Ao longo dessa viagem, André se encantou particularmente pela região de Paranaguá, onde fez algumas reformas na fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres, situada na atual Ilha do Mel, no Paraná. No futuro aquela região passaria por uma grande transformação graças aos dois irmãos Rebouças. Mas antes disso, em 1865, já de volta ao Rio de Janeiro, André elabora um minucioso e brilhante projeto de abastecimento de água para a cidade, se fazendo valer de mananciais e fontes além dos limites da cidade, nas serras que envolvem  a então capital do Brasil. O projeto é aprovado e melhora muito a situação de toda a população, com abastecimento abundante de água limpa para toda a cidade. Nessa mesma época, ele desenvolveu um outro projeto, com o objetivo de revitalizar o antiquado e pequeno porto do Rio de Janeiro e suas docas. Mas este projeto, que não dependia de uma aprovação prévia de Dom Pedro II, foi vetado. E há indícios de que o projeto não foi aceito por ter sido elaborado por um homem negro.

Ainda no ano de 1865 a Guerra do Paraguai se agrava. André Rebouças prontamente se alista como voluntário para lutar no front. É enviado direto para Uruguaiana, no Rio Grande o Sul. Lá conhece o Conde D’Eu, marido da princesa Isabel. Os dois logo se tornam amigos. Em 1866, André vai para a central de comando do exército brasileiro no Paraguai, onde não só ajudou a elaborar estratégias de ataque, como inventou um torpedo que fazia um estrago considerável onde explodisse. Sua invenção ajudou muito o Brasil a avançar em território inimigo. Mas a vida de combatente durou pouco. A verdade é que André Rebouças tinha uma saúde frágil, era um rapaz franzino. Quando criança, chegou a pegar varíola e ficou tão mau, que os pais acreditavam que ele não sobreviveria. Pois justamente no ambiente insalubre dos charcos paraguaios, André contraiu pela segunda vez a varíola. Ficou muito doente, teve baixa e foi enviado de volta ao Rio de Janeiro.

A Guerra do Paraguai foi um fiasco, apesar do Brasil ter saído como vitorioso. Foi uma guerra sangrenta e injustificada. Uma verdadeira carnificina pela qual todo brasileiro deve se envergonhar. Claro, foi um conflito com muitas nuances, o Paraguai começou a guerra tentando invadir o Brasil e tal… mas era algo que poderia ter sido resolvido em muito menos tempo e com muito menos gente morta. Mas isso é assunto para outro momento. O fato é que, com o fim da guerra em 1870, André Rebouças voltou a se dedicar à engenharia. Foi quando elaborou seu projeto mais emblemático e grandioso! A ferrovia que liga Paranaguá a Curitiba, entrecortando toda a Serra do Mar. Um projeto ousado e inédito no Brasil até então. Em 1871 o projeto é aprovado e começam as obras soba supervisão atenta dos irmãos André e Antônio Rebouças. A obra só seria concluída em 1883,com grande êxito. Até hoje está em funcionamento. É uma das mais importantes e belas atrações turísticas do estado do Paraná. O trecho entre Paranaguá e Morretes tem paisagens maravilhosas.

A década de 1870 no Brasil é marcada também por uma grande agitação política. Ao mesmo tempo que movimentos republicanos começam a aparecer, surgem também muitas manifestações abolicionistas. André Rebouças era um homem tímido e sem talento para oratória. Mas tinha um texto vigoroso e ideias muito revolucionárias. Ao lado de personalidades como  Machado de Assis, Cruz e Sousa e José do Patrocínio, André Rebouças integrava a diminuta classe média-alta de negros e deles foi uma das principais vozes. Foi fundador da Sociedade Brasileira Contra a Escravidão, integrou a Confederação Abolicionista e redigiu os estatutos da Associação Central Emancipadora dos Escravos. Era um frequente articulista dos principais jornais do Brasil, onde expunha ideias que extrapolavam o simples fim da escravidão, mas sim propunha um plano de apoio aos negros libertos, para que pudessem ter um sustento e uma vida digna. Uma de suas ideias versava sobre uma reforma agrária, que propunha a diminuição dos grandes latifúndios e distribuição de terras para os negros libertos e pessoas em situação de pobreza. Imagina como ele devia ser bem quisto entre o crescente círculo de latifundiários barões do café.

André Rebouças, além de abolicionista, era também ferrenho monarquista e, após o fim da Guerra do Paraguai, manteve sua amizade com o Conde D’Eu, estreitou seu convívio com o imperador Dom Pedro II, chegando a ser seu conselheiro, e também tornou-se amigo próximo da princesa Isabel. Hoje sabemos que, um home esclarecido como era, Dom Pedro II compartilhava de ideais abolicionistas. Porém, se via preso politicamente a uma nobreza cada vez mais influente e poderosa de latifundiários, que enriqueciam numa velocidade galopante, graças ao café, produzido com mão de obra escrava. A história do Brasil com a escravidão é das mais repugnantes e assombrosas. Fomos o último país relevante do mundo moderno a libertar os escravos, fomos o país que mais recebeu africanos no continente, fomos o país que mais burlou e desprezou as leis de combate ao tráfico negreiro. Tudo isso é a base do que hoje chamamos de racismo estrutural, que deve ser compreendido, para que possamos repelir esse tipo de comportamento. Mas enfim, isso também é assunto para um outro momento. O fato é que André Rebouças e seus companheiros abolicionistas finalmente puderam comemorar no dia 13 de maio de 1888, quando a princesa Isabel assinou a famosa Lei Áurea, que finalmente abolia a escravidão no Brasil. Uma lei capenga, verdade seja dita. Afinal libertou, mas não garantiu apoio nenhum aos negros. Além disso, foi a lei que acabou por enfraquecer ainda mais a monarquia. Princesa Isabel era a sucessora direta ao trono de om Pedro II, mas jamais seria coroada. Ao presenciar a assinatura da lei, o Barão de Cotegipe, deputado que era contra a abolição dos escravos, teria profetizado, dizendo à princesa: “Vossa alteza libertou uma raça, mas acaba de perder o trono.”.

Dito e feito. Em 1889, no dia 15 de novembro, pouco mais de uma semana depois do Baile da Ilha Fiscal, onde André Rebouças foi rejeitado pro uma mulher branca e acabou dançando com a princesa Isabel, Marechal Deodoro da Fonseca deflagrou o golpe militar que derrubou a Dom Pedro II e instaurou a república no Brasil. Não vamos entrar aqui em minúcias sobre a proclamação da república, porque é um assunto interessantíssimo, mas igualmente longo e repleto de camadas a serem pensadas. Assim, dois dias depois do golpe, 17 de novembro de 1889, Dom Pedro II  e sua família são exilados e embarcam num navio com destino a Lisboa. André Rebouças, leal à família real, decide por um auto exílio e embarca junto com o imperador. Logo nos primeiros meses em Lisboa, ele atua como correspondente o jornal britânico The Times. Mas logo depois, mudou-se para Cannes, na França, junto com Dom Pedro II. Rebouças estava ao lado do imperador no hotel Bedford, em Paris, na madrugada de 5 de dezembro de 1891. Foi quando Dom Pedro II deu seu último suspiro.

A morte de Dom Pedro II abalou muito André Rebouças. Ele foi tomado por uma forte depressão. Desorientado e sem conseguir trabalhar, ele decidiu fazer uma viagem pela África, talvez em busca de suas raízes, talvez inspirado por poetas românticos como Rimbaud, ou ainda empenhado em lutar pela libertação dos povos que ainda viviam como colônias de países europeus… não se sabe ao certo. Mas ele passou por Zanzibar, Moçambique até chegar na região do Transvaal, uma região que hoje pertence a África do Sul. No Transvaal, já claramente desequilibrado mentalmente, ele elabora um plano delirante de fornecer roupas a toda a população daquela região. Seu projeto é minucioso e prepotente, visando resolver dois problemas: a falta de roupas para os africanos e um incentivo à indústria têxtil, que estava em franca decadência na Inglaterra, com a expansão da revolução industrial. Eram 300 mil habitantes naquela região africana. Segundo suas contas, para oferecer seis mudas de roupa para cada um , a indústria inglesa iria fornecer 5,4 metros de tecido de algodão. Claro que esse projeto nunca foi colocado em prática. Já debilitado, doente e amargurado, Rebouças volta a Portugal e se estabelece na cidade de Funchal, na ilha da Madeira.

No dia 9 de maio de 1898, faltando apenas 4 dias para a celebração dos dez anos da libertação dos escravos no Brasil, André Rebouças foi encontrado morto à beira mar abaixo de um penhasco na cidade da Funchal. Se ele caiu por acidente ou se jogou para a morte, jamais saberemos. Mas, a notícia de sua morte repercutiu no Brasil e logo ele foi reconhecido como uma das personalidades mais importantes do século XIX. Foram feitas a ele muitas homenagens. As mais célebres e duradouras são o túnel André Rebouças, que interliga os bairros de Rio Comprido e da Lagoa na cidade do Rio de Janeiro e a avenida Rebouças, na cidade de São Paulo, que liga a avenida Paulista à Marginal Pinheiros.

André Rebouças foi um homem brilhante e sua vida e obra devem ser relembradas e celebradas cada vez mais. Entender a vida de Rebouças significa ter uma compreensão ampla do racismo estrutural e da herança nefasta da escravidão. O legado de Rebouças é muito maior do que uma audaciosa ferrovia que corta montanhas, pois é também a conscientização da necessidade de proporcionar a todos educação e oportunidades iguais.

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Antropofagia: do Sardinha ao Manifesto.

Escrito para o site. Janeiro de 2023

Desde a chegada de Cabral até a corrida do ouro em Minas Gerais, ou seja, por praticamente 150 anos, os indígenas tiveram um protagonismo indispensável na história do Brasil. Claro, na maioria das vezes com finais trágicos. Mas o que seria do início da colonização baiana sem o encontro de Caramuru e Paraguaçu? O que seria de São Paulo sem a aliança entre o lendário João Ramalho e o morubixaba tupiniquim Tibiriçá? O que seria dos portugueses no Rio de Janeiro sem os mesmos tupiniquins na batalha contra os franceses, no que ficou conhecido como o projeto França Antártica? O que seria do sul do Brasil sem as inigualáveis missões jesuíticas? E esses são só alguns episódios marcantes. Tem muito mais. Mas um desses episódios em especial, merece ser contado em detalhes, por dois motivos: primeiro porque não termina em tragédia para os índios que protagonizaram tal acontecimento. Segundo porque o ritual que envolve essa história acabou sendo celebrada 4 séculos depois, num dos momentos mais importantes da cultura brasileira.

Contam os livros que, por volta de 1550, o padre Manuel da Nóbrega desenvolvia seu árduo trabalho de catequisar os índios, traduzindo os evangelhos para o tupi e criando comunidades que ficariam conhecidas como missões jesuíticas. Acontece que esse trabalho era como dar murro em ponta de faca, pois os governadores das capitanias queriam simplesmente escravizar os índios, e não havia lei nenhuma que protegesse o trabalho dos jesuítas e muito menos os índios.. O padre Manuel da Nóbrega era um dos mais importantes nomes da Companhia de Jesus, uma espécie de tropa de elite do catolicismo. Ele era um homem influente na Europa, homem de confiança do criador da Companhia, Inácio de Loyola. Foi então que o padre Nóbrega, depois de muito insistir através de cartas e mais cartas ao rei português, ao Inácio de Loyola e até mesmo ao Papa, conseguiu que um bispo fosse enviado para o Brasil, a fim de agilizar as tomadas de decisões e trazer mais ordem à colônia, sem depender do longo tempo do trânsito de cartas entre Brasil e Portugal.

Chega em Salvador então, em 1552, o bispo Dom Pero Fernandes Sardinha, o Bispo Sardinha! Português letrado, porém ganancioso, ficou conhecido por oferecer aos que lhe vinham se confessar, penas pecuniárias. Ou seja, ao invés de rezar o terço, 20 Ave Maria, 30 Pai Nosso, bastava pagar uma módica quantia em moedas de ouro, que os pecados seriam perdoados. Que homem formidável, não? Uma vez no Brasil, Sardinha se aliou de pronto a Antônio Cardoso de Barros, o primeiro Ministro da Fazenda do Brasil, cargo que se chamava na época Provedor-Mor, e um homem famoso por ser igualmente ganancioso e facilmente corruptível. Sem contar que o bispo se recusou a morar na simples casa paroquial de uma igreja e se instalou numa luxuosa mansão. Ali começariam os mandos e desmandos do bispo, sempre com vistas a arrecadar cada vz mais dinheiro.

Mas a paz do bispo durou apenas 4 anos. No início de 1556 o bispo Sardinha passou a fazer críticas ferrenhas ao governador da capitania da Bahia e a seu filho, Álvaro Duarte da Costa, que tinha um comportamento libertino, por assim dizer. Sabe como é. Ele era um playboy, jovem, rico e destemido, saía pelas tabernas de Salvador fazendo festas repletas de luxúria e excessos. Enquanto isso, em abril daquele mesmo ano, percebendo que a cidade estava desguarnecida, os índios Tupinambás fazem um ataque surpresa, tentando tomar Salvador e expulsar os portugueses. Os índios estavam de saco cheio da insistente catequização de Padre Nóbrega e sua turma, bem como não aguentava mais ver membros da tribo morrendo de varíola e outras doenças. E aí, invadiram a cidade sem dó nem piedade. Porém, eles foram derrotados por um contra ataque português chefiado por ninguém menos que Álvaro Duarte da Costa, que, além de playboy festeiro, também manjava de táticas de guerrilha e era um exímio lutador. Acabou aclamado como herói da cidade. Com moral na praça, o filho do governador fez denúncias de corrupção, verdadeiras, diga-se, e convenceu as autoridades da capitania a expulsar o Bispo Sardinha e seu fiel amigo, o provedor-mor Cardoso de Barros.

No dia 2 de junho de 1556, o bispo e uma comitiva de mais 96 pessoas embarcaram numa velha nau de nome Nossa Senhora da Ajuda, com destino a Lisboa. Só que cinco dias depois, após atravessar a foz do rio Cururipe, um trecho de difícil navegação, cheio de corais, no nordeste brasileiro, a nau encalhou numa barreira de corais, danificando fatalmente a embarcação, durante uma noite de raivosa tempestade. No dia seguinte, a comitiva de 97 portugueses sobreviveu à tempestade, mas teve que abandonar a nau. Chegaram à praia, onde encontraram aproximadamente 200 índios da tribo Caeté, conhecidos por odiar portugueses. Porém, O bispo Sardinha e sua turma não sabiam disso. Os Caetés se mostraram solícitos e se oferecem para conduzir a comitiva até a cidade de Olinda em segurança. Ingenuamente, os portugueses agradeceram e aceitaram a oferta. Forma-se então uma fila indiana, alguns poucos índios à frente mostrando o caminho, os portugueses e o restante dos índios no fim da coluna. Eis que no meio do caminho, os índios encurralam os portugueses. Era necessário atravessar um trecho de rio raso, porém consideravelmente largo, onde ficava com água na altura do peito. Os índios da frente se adiantaram e nadaram até uma margem, e os índios do fim da fila ficaram na outra. Quando os portugueses estavam no meio do rio, uma nuvem de flechas sobrevoa e cai sobre eles. A maioria morre ali mesmo. Os poucos que sobreviveram são levados como prisioneiros para a aldeia. Entre eles está o bispo Sardinha. Dias depois, fizeram um dos famosos banquetes antropofágicos e devoraram com toda a cerimônia, pompa e circunstância o primeiro bispo do Brasil. O bispo Sardinha.

Uma das ironias dessa história é que o reino de Portugal mandaria em seguida mais um bispo para o Brasil. O nome dele? Bispo Pero Leitão! Mas este não acabou sendo devorado por índios, apesar de seu nome tão sugestivo quanto o de seu antecessor. Outro aspecto muito relevante dessa história é o ritual em si, do ato de canibalismo. Ele ficou conhecido como ritual antropofágico porque realmente tinha esse viés eucarístico, repleto de misticismo. O ritual antropofágico é conhecido com riqueza de detalhes através de relatos de alguns jesuítas, mas principalmente pelas memórias do alemão Hans Staden. O livro que ele escreveu sobre suas desventuras no Brasil teria uma importância imensa para inspirar todo um movimento artístico por aqui 4 séculos depois, o modernismo.

Hans Staden foi um aventureiro alemão que esteve no Brasil como explorador por duas vezes, uma em 1548 e outra em 1550. E foi nessa segunda visita que tudo aconteceu. Tudo mesmo!  Ao se aproximar da costa brasileira, próximo ao atual estado do Maranhão, o navio onde ele viajava foi atacado por piratas. Conseguiram se livrar dos bandidos e seguiram viagem, rumo a Laguna, em Santa Catarina, seu destino era o Rio da Prata. Porém, já na costa catarinense, a embarcação naufragou durante uma tempestade. Hans Staden e alguns outros tripulantes sobreviveram, nadaram até a praia e seguiram a pé até São Vicente, litoral paulista, uma verdadeira epopeia cheia de aventuras. Claro, isso tudo aconteceu ao longo de meses. O aventureiro alemão havia saído de Sevilha na Páscoa de 1550, naufragou na ilha de Santa Catarina meses depois e por lá permaneceu por dois anos, até que resolveu rumar para São Vicente, em busca de uma carona para voltar para a Europa.

Em 1552 ele acabou se estabelecendo em São Vicente, arranjou um trabalho como arcabuzeiro no forte de Bertioga. Em 1554 Staden ainda mantinha o mesmo trabalho. Era fim de janeiro, poucos dias antes da fundação da cidade de São Paulo, do outro lado da Serra do Mar, pelo mesmo padre Manoel da Nóbrega que trouxera o bispo Sardinha para o Brasil. Hans Staden caminhava pela praia quando foi surpreendido por um grupo de índios Tamoio, e imediatamente capturado. Os Tamoios eram muito chegados a uma treta, gostavam de violência e, acima de tudo, desprezavam homens brancos. Ah, sim, é claro, também praticavam a antropofagia. Mas afinal, que diabos é antropofagia?

A antropofagia era um ritual místico indígena comum a várias tribos, Tamoio, Tupinambá, Tupiniquim… e todas essas tribos eram inimigas umas das outras. Quando um guerreiro Tupiniquim era capturado pelos Tamoio, para aquele guerreiro, ser morto e devorado no ritual antropofágico era uma honra. Tanto que o ritual levava dias para ser preparado. Enquanto isso o guerreiro capturado vivia entre a tribo numa boa, pois seria uma vergonha fugir, ele sequer poderia voltar para a sua própria tribo. Nesses dias de preparação, as mulheres produziam o cauim, uma bebida fermentada de mandioca altamente alcoólica e alucinógena. No dia do ritual, era encenada uma fuga do prisioneiro. Ele saía correndo para a floresta, mas logo se deixava ser capturado. Era recebido na aldeia entre gritos e ofensas. O morubixaba, autoridade máxima da tribo, que já estava calibrado no cauim desde cedo, vem em transe e, num golpe de tacape, arrebenta a cabeça do prisioneiro, que cai morto. Às pressas, as mulheres vem com cuias e recolhem o sangue e os miolos, que são distribuídos pela tribo toda, inclusive crianças. Em seguida, o corpo é cortado e colocado sobre o fogo. A festa dura dois dias de comilança do corpo do guerreiro e bebelança de muito cauim. Oque torna isso tudo mais do que um simples ato vil de canibalismo é que os índios acreditavam que, ao consumir a carne daquela pessoa, estava incorporando todas as virtudes que ele tinha em vida. Tanto que não eram todos os inimigos capturados que eram devorados, apenas alguns escolhidos. E quando Hans Staden foi capturado, ele acabou sendo escolhido para ser devorado, pois se mostrou valoroso, ao lutar sozinho contra mais de uma dezena de índios antes de ser capturado.

Ele ficou dias na tribo. Nesse período, se engraçou com a filha de um dos caciques e, por isso, foi sendo poupado. Passam-se meses. Ele próprio presenciou mais de uma vez o ritual antropofágico acontecer com inimigos capturados depois dele. Staden conquistou a simpatia dos índios e foi ficando, ficando… e passaram-se 3 anos! Em 1557, finalmente ele vê uma oportunidade de fugir e embarca num navio francês de volta para a Europa. Lá, ele conta, numa narrativa muito detalhada e cativante, tudo o que viveu. O livro foi rapidamente traduzido para várias línguas e virou best seller em toda a Europa. O título da obra é Hans Staden: Suas Viagens e Cativeiro Entre os Selvagens do Brasil. E foi uma cópia desse livro, no original, em alemão, que foi adquirido na Europa, por acaso, pelo barão do Café Eduardo Prado, em 1900.

Eduardo Prado era um dos cafeicultores paulistas mais ricos da época. Ao retornar ao Brasil, encantado com a obra de Staden, ele deu este livro para um botânico suíço chamado Albert Löfgren, que o traduziu para o português. A ideia é que o livro fosse traduzido e editado para ser lançado no Brasil, tudo sob o financiamento do próprio Eduardo Prado. O filho de Eduardo Prado era Paulo Prado, um intrépido e intelectual jovem paulistano que encabeçou, e financiou, a legendária Semana de Arte Moderna de São Paulo em 1922. Paulo Prado era amigo de todos os modernistas e estava sempre com eles, apesar de ele próprio não ter talento algum para a pintura, literatura ou música. Até 1923 os modernistas brasileiros estavam completamente voltados para a vanguarda artística do Velho Mundo. Porém quando o poeta francês Blaise Cendras vem para o Brasil visitar seus amigos Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, tudo muda. Cendras se encantou com a cultura caipira do interior de São Paulo, onde Tarsila do Amaral tinha família, e principalmente com a arquitetura barroca, as paisagens e esculturas das cidades históricas de Minas Gerais. E passou um sermão nos artistas brasileiros dizendo algo como “Que diabos vocês estão fazendo atrás da arte europeia, se aqui vocês tem uma raiz artística belíssima e riquíssima! Tomem vergonha!”. Ele não deve ter sido assim tão drástico, mas que gosto de imaginar que foi assim.

O fato é que, depois disso, principalmente Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Tarsila do Amaral passaram a se voltar para as raízes brasileiras e procurar uma identidade. Em março de 1924 é publicado no jornal Correio da Manhã o Manifesto da Poesia Pau Brasil, que seria mais encorpado e lançado em livro de mesmo título ainda naquele ano. Escrito por Oswald de Andrade, o texto sugere uma busca da identidade brasileira, um aceno ao primitivismo, mas com uma linguagem moderna, uma narrativa com a fluidez e liberdade do expressionismo italiano. Os modernistas acabavam de descobrir o Brasil! E foi logo depois do lançamento deste livro que Paulo Prado, encantado com essa busca de Oswald pelo Brasil profundo, lhe presenteou com uma cópia em português das memórias de Hans Staden. O livro do alemão impressionou muito Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, que eram casados, na época. Impressionou tanto que os inspirou a produzir duas obras fundamentais do modernismo brasileiro: o antológico Manifesto Antropofágico, escrito por Oswald e a pintura brasileira mais icônica e importante do país, o Abaporu, pintado por Tarsila do Amaral. Vale lembrar inclusive que Abaporu em tupi significa Comedor de Gente.

Assim, termino este texto, que nada mais é do que uma verdadeira homenagem aos povos nativos do Brasil e de toda a América. Se no passado nossos índios tiveram protagonismo, infelizmente, hoje estão à margem, mais que esquecidos, estão sendo violados por garimpeiros e grileiros de terra, principalmente o povo Yanomami. É preciso lutar para que esses povos sejam protegidos, e respeitados. Afinal, estaremos protegendo e respeitando assim a nossa própria história.

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Os tempos daquela bossa.

Texto publicado em janeiro de 2021 no Diário do Sudoeste

Eu gosto muito de história do mundo e história do Brasil. Mas eu gosto ainda mais de ouvir e poder contar boas histórias, interessantes, engraçadas, incríveis. Esses dias eu vi uma entrevista tão boa do Roberto Menescal contando alguns causos da época do início da bossa nova que acabei querendo escrever sobre isso. Realmente o fim dos anos 1950 no Brasil foram mágicos.

“Em 1958 o Brasil estava irreconhecivelmente inteligente!”

Foi o que escreveu o crítico e jornalista Roberto Schwarz sobre este período realmente efervescente do país. Em 1955 Juscelino Kubitschek assumiu a presidência e, com seu plano desenvolvimentista, batizado “50 anos em 5”, abriu o comércio estrangeiro, alavancou a economia e construiu a cidade de Brasília em espantosos 3 anos. Em harmonia com essa onda de euforia e esperança política e econômica, o Brasil foi campeão da Copa do Mundo de futebol pela primeira vez em 1958, na Suécia, imortalizando as pernas tortas de Garrincha e mostrando ao mundo um jovem e talentoso jogador de 17 anos chamado Pelé. O Cinema Novo dava seus primeiros passos após o lançamento de Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos, e, principalmente, foi lançado em 1958 o compacto de Chega de Saudade, canção de Tom Jobim e Vinícius de Moraes interpretada por João Gilberto.

Em 1954 Vinícius de Moraes, poeta já aclamado em todo o país, escreveu a peça de teatro Orfeu da Conceição, adaptação do clássico grego transposto para a realidade dos morros cariocas. Vinícius procurava algum músico para musicar os poemas que faziam parte da peça. Nessa época, Tom Jobim era muito jovem, vinte e poucos anos, tocava em algumas boates e fazia alguns bicos durante o dia pra pagar o aluguel. Havia um bar em Copacabana onde ele sempre parava no fim da tarde pra tomar uma cervejinha antes de ir pra casa. Numa dessas tardes, lá estava Vinícius de Moraes com alguns amigos bebendo e papeando. Um amigo em comum chamou Tom para a mesa e o apresentou ao Vinícius, dizendo que aquele garoto era o cara certo para musicar os poemas de Orfeu da Conceição. Vinícius então passou a explicar toda a ideia da peça, os poemas, como ele queria a música… falou entusiasmado por um tempão, possivelmente já embalado por algumas doses de uísque. Tom Jobim ouviu calmamente tudo que Vinícius tinha a dizer. Quando acabou, Tom Jobim olhou para o Poetinha e disse: “Tá tudo muito bom, muito bonito. Mas vai rolar um dinheirinho?” Vinícius olhou bem para a cara do rapaz por alguns segundos em silêncio, para em seguida explodir numa gargalhada. Nascia ali uma amizade que duraria por toda a vida.

Em 1956 as músicas de Orfeu da Conceição foram lançadas em vinil como trilha sonora da peça. Foi o primeiro disco da parceria Tom e Vinícius, que já trazia um clássico: a canção Se Todos Fossem Iguais a Você. A parceria não parou mais desde então.

Em abril de 1958 aconteciam as gravações do disco Canção do Amor Demais, um álbum inteiro de composições da dupla interpretadas pela Elizeth Cardoso, umas das mais renomadas cantoras da época. Este disco é a pedra fundamental da Bossa Nova. Apesar de Elizeth Cardoso ser uma cantora à moda antiga, com voz forte e marcante, além do disco ser inteiro de composições de Tom e Vinícius, um jovem músico baiano recém-chegado ao Rio de Janeiro participou da gravação como músico contratado tocando violão. Era João Gilberto. Uma das músicas do disco era Chega de Saudade. Durante a gravação, João Gilberto calmamente interrompeu a cantora conhecida como rainha do rádio dizendo: “Olha, não é assim, não, a música. Você está cantando errado”. Todo mundo no estúdio congelou com a audácia daquele jovem corrigindo uma das divas do rádio brasileiro. O problema estava no trecho da música que diz: “apertado assim, calado assim, abraços e beijinhos…”. Ela, incomodada, falou: “Estou cantando errado? Então por que você não me ensina como é?”. Elizeth estava cantando o trecho de forma corrida, muito reta. João Gilberto então cantou baixinho, enfatizando cada pausa das notas entre as palavras. Um produtor que assistia as gravações, em seguida, convidou João Gilberto para gravar um disco, cujo primeiro compacto foi justamente Chega de Saudade, cantada com toda a sua suavidade e beleza. Foi quando toda aquela turma da zona sul do Rio de Janeiro entendeu como tocar samba. Nascia a Bossa Nova.

João Gilberto dizia para seus novos amigos, jovens cariocas como Roberto Menescal, Carlos Lyra, Nara Leão e tantos outros, que o problema de tocar samba no violão é que o ritmo do samba tem muitos instrumentos fazendo coisas diferentes. O segredo é escolher um, no caso o tamborim. A batida do violão na Bossa Nova nada mais é do que o ritmo que o tamborim imprime no samba. Com essa turma toda já escolada, e com essa nova formatação musical elaborada pela santíssima trindade: os acordes de jazz de Tom Jobim; as letras delicadas e ensolaradas de Vinícius de Moraes; e o ritmo e jeito de cantar peculiar de João Gilberto, fizeram com que a Bossa Nova se espalhasse pelo mundo.

Em especial os Estados Unidos se renderam ao banquinho e violão de maneira impressionante. O saxofonista de jazz Stan Getz gravou um disco com João Gilberto e até mesmo Frank Sintra chegou a gravar um disco inteiro em parceria com Tom Jobim, imortalizando The Girl From Ipanema.

Para concluir, em 1962 o Carnegie Hall, em NYC, recebeu três shows com os principais nomes da Bossa Nova, todas as apresentações absolutamente lotadas.

Não teve nada igual a este período entre 1958 e 1963 na história do Brasil. Inquestionavelmente o Golpe Militar de 1964 foi um golpe muito duro pra nós. Até parece que a gente em 2021 ainda não se recuperou totalmente dele.

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GETÚLIO

Texto publicado em maio de 2014 nas minhas redes sociais e posteriormente na revista Vanilla.

Fui ao cinema nesta tarde de domingo assistir ao filme Getúlio, protagonizado com muito esmero por Tony Ramos. Vou falar primeiro sobre o filme em si e depois explico porque me senti compelido a vir escrever sobre ele.


Getúlio é um longa metragem muito bem dirigido por João Jardim. Retrata os últimos dias de vida do então presidente Getúlio Vargas em agosto de 1954. Após um atentado ao jornalista e candidato a deputado Carlos Lacerda, uma série de acusações recaem sobre o governo, principalmente à defesa pessoal de Vargas. São descobertos também vários documentos comprovando corrupção e vários outros atos ilícitos dentro do palácio do Catete. Parte dos militares começam a exigir a renúncia de Vargas e alguns ministros começam a falar de conspiração.

Tony Ramos encarna um Getúlio solitário e melancólico. Apesar de cansado e sentindo-se traído, insiste em lutar pela honra de seu nome, negando-se a renunciar, sabendo que não tem culpa de tudo que acontece à sua volta. Também fica claro que Tony Ramos não se prendeu a maneirismos, não forçou um sotaque gauchesco. Sendo assim, sua atuação teve mais fluidez, tornando o personagem mais natural.
O roteiro é bem escrito, apoiado em depoimentos e fatos, mas cuidadosamente dramático, denso, porém sem muita profundidade.
A fotografia chama a atenção. Muito bem feita, com muitos contrastes e ângulos fechados.

A direção de Jardim dá movimento ao filme. Ainda que seja uma trama densa e cheia de complicações, o filme é bem conduzido, sem ficar cansativo. Em resumo, é um filme muito bom. Mais um ponto para o cinema nacional que vem, cada vez mais, apresentando filmes maduros, bem feitos e bem desenvolvidos, sem precisar recorrer aos clichês favela, miséria e nordeste.

Me senti compelido a vir escrever aqui justamente pelo filme ser tão bom.
O cinema consegue criar mitos com muita facilidade. O perigo é que alguns desses mitos não são exatamente como mostrados na tela da sala de cinema. Neste caso, Getúlio Vargas aparece neste filme como um homem honrado e democrático, que se recusa a permitir um golpe autoritário por meio dos militares. Esta visão faz dele um verdadeiro mártir da política nacional, um homem que lutava pela liberdade do povo e pela honra do nome de sua família, chegando a se suicidar, dando sua vida ao invés da renúncia.

Só gostaria de lembrar aqui que este mesmo Getúlio Vargas nas décadas de trinta e quarenta instaurou uma ditadura violenta, fechando o congresso, censurando a imprensa e matando qualquer um que fosse contra seu governo. Vargas, nos anos quarenta, não só instaurou um regime fascista no Brasil, como flertava com o nazismo alemão e o fascismo italiano. Hitler recebeu mais de um telegrama de Getúlio e a polícia brasileira tinha conexões com a Gestapo, como ficou claro no caso de Olga Benario Prestes, que foi deportada para a Alemanha nazista mesmo sendo judia e estando grávida. A ditadura varguista que ficou conhecida como Estado Novo, foi a mais truculenta que o Brasil já viu, sendo mais severa e desumana do que a ditadura instaurada pelo golpe militar de 1964.


Em suas próprias palavras, Getúlio já havia rasgado duas vezes a constituição brasileira a seu favor antes de voltar ao governo nos anos cinquenta. Claro que Getúlio Vargas teve um lado muito bom para o Brasil, em especial ao regulamentar e dar direitos aos trabalhadores. Vargas foi o mais populista de todos os políticos que já passaram pelo governo brasileiro até hoje. Para o bem e para o mal. Portanto, acredito que este filme vem bem a calhar neste ano de eleições para nós brasileiros. Justamente para que possamos questionar quem são nossos candidatos e saber olhar para o passado destes. Indo além, olhando para o passado do Brasil, podemos ir às urnas tendo feito uma análise cuidadosa da nossa política e com a consciência tranquila.
Afinal, o passado a gente não muda. Mas o futuro…

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MAN IN THE BOX: A HISTÓRIA DE HOUDINI.

Texto publicado em outubro de 2021 no Diário do Sudoeste.

Não há nada mais certo no mundo do que a velha, porém inoxidável, afirmação que toda mãe diz para seu filho em algum momento da vida: “Você não é todo mundo!”. Isso reforça a ideia de cada um de nós, seres humanos, somos únicos, e não devemos nos comparar com as outras pessoas, ou querer imitá-las, mas sim fazer as coisas da melhor maneira possível, por nossos próprios meios. Se por um lado isso parece desafiador, por outro é um alívio.  Imagina se você tivesse que se comparar a Alexandre, o Grande, ou Mozart, ou Santos Dumont… enfim, homens que realizaram coisas incríveis, que parecem muito distante do alcance do homem comum. Claro, que esses e outros exemplos de seres humanos que marcaram a história não devem ser tidos como um padrão a ser alcançado, mas podem servir de inspiração para que se pense fora da caixa. Assim como fez um jovem húngaro, que ouvia os conselhos de sua mãe e levou bem a sério esse negócio de pensar fora da caixa.

Ehrich Weisz nasceu em Budapeste no dia 24 de março de 1874. Ainda criança se mudou com a família para os Estados Unidos em busca de uma vida melhor. Depois de passar por algumas cidades pequenas, a família se estabeleceu em Nova Iorque. O pai de Ehrich era um rabino tido como muito antiquado e conservador, mas era um homem muito correto e devotado a sua esposa. O garoto cresceu sob a imagem do pai, mas se encantou pelas artes circenses, o entretenimento mais barato que uma criança pobre poderia ter acesso naquela época. Começou a elaborar números como trapezista e malabarista com seu irmão, Theodore, e fazer pequenas apresentações na rua. O jovem Ehrich era muito dedicado, aos 16 anos corria aproximadamente 19 quilômetros por dia, tinha um corpo atlético e forte. E se manteve assim por toda a sua vida adulta, inclusive sem se entregar a vícios como o álcool e cigarro.

Por volta de 1890, tanto nos Estados Unidos como na Europa, eram muito comuns os circos de aberrações, onde pessoas com deformidades eram apresentadas ao público. Ehrich e Theodore passaram a fazer parte das atrações desses circos, e já incluíam em suas apresentações alguns números de mágica com cartas e etc. Ehrich achava que seu nome não era bem compreendido pelos norte americanos e resolveu arrumar um nome mais simples. Inspirado num famoso mágico francês da época, Robert Houdin, ele passou a se chamar Harry Houdini, apresentando-se então com Theodore como os Irmãos Houdini. Nessa época, o pai de Harry foi acometido de um terrível câncer e faleceu. No leito de morte, ele fez Harry prometer que não deixaria faltar nada a Cecilia, sua esposa e mãe de Harry. O rapaz já via a mãe como uma santa, com a morte do pai, se tornou obcecado por melhorar de vida. Olhando para a pobreza em que vivia, ele só pensava em uma coisa: escapar.

Se apresentando ao lado de trupes circenses itinerantes, Harry conheceu Beatrice Raymond, uma cantora alemã, jovem e bonita. Após 3 semanas de namoro, o casal já se casou e passou a se apresentar juntos, como o Casal Houdini, onde Beatrice, que ficou conhecida como Bess Houdini era assistente de palco. Harry almejava poder deixar a rotina massacrante de viagens, pouca infra estrutura e pouco dinheiro dos circos para se apresentar nos palcos dos teatros de vaudeville, os teatros populares da época, que faziam enorme sucesso. E foi com um número de ilusionismo chamado Metamorfose que ele conseguiu esse upgrade. O número consistia em ele entrar algemado dentro de um baú trancado a cadeado e um minuto depois aparecer livre, com o baú ainda fechado. E quando aberto, quem aparecia lá dentro era Bess com as mesmas algemas que estavam em Harry. O sucesso desse número foi estrondoso. O Casal Houdini passou a viajar por todo o país. Harry passou a elaborar novos números, cada vez mais complicados. Era acorrentado e amarrado, trancado em caixas… e sempre conseguia escapar. Agora se apresentava apenas como Houdini, O Rei das Algemas. Depois de 14 meses de sucesso absoluto e muito dinheiro nos Estados Unidos, Houdini partiu para uma turnê na Europa, onde iria escapar de vez da pobreza.

Na Europa Harry se tornou um mito. Ele sabia como chamar a atenção. Quando chegava a uma cidade, a primeira coisa que fazia era pedir para ser preso na cadeia local no mesmo dia em que tinha sua apresentação marcada. E ele fazia questão de ser preso em frente ao maior número de pessoas possível, e só de cueca, para provar que não levava ferramenta nenhuma. Pouco tempo depois ele escapava e aparecia livre pela rua. Além disso, tinha muito apelo popular, ele dialogava bem com os proletários, que metaforicamente se viam aprisionados ao trabalho e à pobreza, e viam em Harry uma inspiração para também conseguir escapar daquela realidade. Assim, seus shows estavam sempre lotados. Depois de 5 anos Harry estava cansado e sentindo muita falta de sua mãe. Já com muito dinheiro no bolso, ele resolveu voltar para os Estados Unidos. De volta a Nova Iorque, ele comprou uma casa enorme para a sua mãe e passou a caçar novos desafios.

Harry passou a anunciar que procurava pessoas que criassem qualquer dispositivo capaz de prendê-lo. E ele sempre conseguia vencer.  Caixas, correntes, um envelope, uma bola de couro costurada, escrivaninhas e até mesmo um piano de cauda que teve seu tampo pregado com Harry dentro. E ele escapou. Além do mais, Houdini envolvia o público, convidando as pessoas a subirem ao palco para conferir suas amarras e cadeados, verificando que não havia armação. O que só fazia aumentar o seu mito. Mas ainda não era o suficiente. Cada vez mais parecia que Houdini só não conseguiria escapar da morte. Foi quando uma cervejaria o desafiou a ser trancado num grande barril de chopp cheio de água, com as mãos algemadas, claro. Ele topou. E conseguiu escapar de novo. Esse truque se tornou um de seus grandes sucessos. Ele entrava no barril algemado, o barril era lacrado com cadeado. Um minuto depois ele aparecia todo encharcado e o barril ali do lado, com os cadeados intocados. Houdini passou a aceitar desafios cada vez maiores, e agora ao ar livre. Um de seus números mais famosos foi quando ele foi preso num caixote de madeira, sempre algemado, o caixote tinha sua tampa pregada e ainda presa por cadeados. A caixa foi atirada no rio. Ela afundou rapidamente. Após angustiantes dez minutos, Houdini vem à tona. A caixa é içada e está fechada. Quando aberta, lá estão as algemas. Agora, o céu era o limite.

Nova Iorque nos anos 1920 vivia em pleno crescimento. O fim da Primeira Guerra Mundial deu fôlego para que a economia crescesse. As ruas da cidade estavam cheias de guindastes que içavam vigas de concreto para a construção de prédios. Um desafio a altura de Houdini. Ele então era pendurado por tais guindastes pelos pés, ficando de cabeça para baixo e amarrado em uma camisa de força. E o danado conseguia se livrar da camisa de força na frente de todos, atirando a peça para a multidão e descendo livremente! Porém, quando nada parecia poder matá-lo, ironicamente a morte veio justamente de dentro para fora. No dia 30 de outubro de 1926 Houdini foi internado com dores dilacerantes no abdômen. Era uma apendicite supurada que o consumia já havia alguns dias. Seus números sempre exigiram dele uma forte resistência a dor, pois ele invariavelmente deslocava o ombro, quebrava costelas e etc. Pois ele vinha suportando essa dor abdominal por dias, para não deixar de cumprir seus compromissos. Quando foi internado, já havia uma infecção generalizada e nada que pudesse ser feito. No dia 31 de outubro de 1926 Harry Houdini foi vencido pela morte. Houdini conseguiu escapar da pobreza, do anonimato e entrou pro rol dos seres humanos mais incríveis do mundo. É até hoje considerado o maior ilusionista que já existiu. Como provavelmente a mãe dele disse em algum momento da infância, ele não era todo mundo. Você também não é todo mundo. Mas pode se inspirar no Houdini, que mostrou que sempre dá pra escapar. O segredo é sempre enfrentar para poder escapar, mas nunca fugir.

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