Ficção

No Cartório

Texto publicado nas redes sociais em abril de 2020.

 – Bom dia, em que posso ajudá-lo?
 – Bom dia. Eu vim registrar o meu filho, que acabou de nascer.
 – Opa, que beleza! Meus parabéns.
 – Brigado.
 – E qual vai ser o nome?
 – Enzo Pereira Lima
 – Ih, mas aí não pode. Não pode ser outro nome?
 – Como assim não pode, moço? Eu não posso escolher o nome que eu quero pro meu filho?
 – Pode, mas tem umas restrições aí, né… tem esse decreto novo do nosso querido capitão, o presidente…
 – Que decreto, cara?
 – Já deu o limite aí pra Enzo, Valentina, esses nomes da moda…
 – Como assim?
 – Chegou num número aí… sei lá… um milhão. Aí não pode mais. Quem colocou esses nomes colocou, quem não colocou não coloca mais.
 – Mas não faz o menor sentido isso.
 – Tô aqui só cumprindo ordem. Mas não pode.
 – Puta merda. E agora, eu nem pensei em outro nome.
 – É, eu não queria estar na tua pele não.
 – Deixa eu ligar pra minha mulher, peraí. Alô, amor, olha, deu problema aqui. Não pode registrar o menino como Enzo. É, não sei, porra, mas não pode. O presidente não deixa. Como assim, que presidente, Helena, o presidente do Brasil, porra! Sei lá… tá, por mim tá bom. Vou ver aqui. Beijo. Olha, ela falou pra colocar o nome do avô dela, que veio da Espanha e tal… então vai ser Juan. Juan Pereira Lima;
 – Ih, mas aí não pode também.
 – Ah, você tá brincando, né, amigo. Como assim não pode?
 – É, Juan, com essa pronúncia mesmo, “Ruán”… ?
 – Isso, é o nome do avô da minha mulher.
 – Então, é que Juan é meio que nome de cubano, né, soa meio comunista. Pega mal pra nós. O decreto do capitão também fala de nomes estrangeiros que lembrem Cuba, Venezuela… aí tem que cortar mesmo.
 – Puta que pariu!
 – Mas olha, se o senhor quer nome estrangeiro, nós temos umas sugestões aqui. Por exemplo, Washington.
 – Mas aí, me fode. Não sei nem escrever isso.
 – Pois é, tem essa exigência, além da pronúncia. Estamos liberados a registrar criança com esse nome mediante comprovação dos pais conseguindo soletrar o nome e fazendo a pronúncia correta. “Uáshintan”.
 – Porra, mas aí eu tenho que fazer um curso de inglês pra falar o nome do meu filho?
 – Ah sim. Estamos inclusive com um convênio com a Wizard. O senhor pega esse formulário aqui e não paga matrícula e tem dez por cento de desconto na mensalidade. E se falar que foi o Valdir que indicou, que sou eu, no caso, eu ganho uma comissãozinha. Dá essa força pra nós!
 – Que mané Wizard, cara! Eu quero só registrar meu filho!
 – Calma, senhor. Não precisa gritar.
 – Calma o caralho! Não posso batizar o meu filho com o nome que eu quero, não sei que nome vou colocar, minha mulher vai ficar uma fera comigo… que que eu faço agora? Minha mulher vai me matar…
 – Olha, posso dar outra sugestão. Se o senhor colocar o nome no menino de Jair, ganha um cupom de cinquenta reais em compras na Havan. Se colocar Jair Messias, registrando aqui pelo meu computador, eu ganho uma comissãozinha. Dá essa força aí pra nós.
 – Nem fodendo. Vou embora. Vou conversar com a minha mulher e outro dia eu volto, se ela não me matar, por eu não conseguir fazer uma coisa tão básica como registrar o meu filho.
 – É, eu te entendo, senhor. Espero que fique tudo bem e vocês escolham um nome que os satisfaça e que seja permitido pela nova legislação. Ainda bem que meu filho nasceu em 2017, antes dessa lei. Não tive esses problemas.
 – É mesmo? E como chama o seu filho?
 – Enzo.

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O SEBO

Eu não me considero um colecionador de discos. Tampouco sou um aficionado. O termo que prefiro para me definir é “apaixonado” Sou apaixonado por discos. E quando eu digo disco, entenda que eu estou falando do vinil, daquele disco grande, com uma bela capa, que você põe numa vitrola e, enquanto ele gira, você coloca a agulha em contato com os sulcos. Primeiro vem aquele chiado e depois entra a canção. Como alguém pode gostar de ouvir Wouldn’t It Be Nice, dos Beach Boys, sem aquele chiado delicioso antes da introdução?

Pois bem, sendo um apaixonado, e não um colecionador, eu não compro qualquer disco. Compro somente se for um disco que eu gosto muito. E sempre tenho uma wishlist na cabeça, alguns títulos raros, que eu sonho em ter um dia na minha discoteca. Essa lista de discos mais desejáveis varia muito de tempos em tempos, até porque, alguns desses discos a gente vai achando pelos caminhos da vida. O Tommy, do The Who, por exemplo, já esteve muito presente nesta lista, mas saiu quando eu passei uns dias em Londrina e o adquiri num sebo de lá. Já o Raw Power, do Iggy Pop & The Stooges ou o It’s Alive, dos Ramones, são um desejo constante que ainda não consegui realizar. Um disco que ganhou força de uns tempos para cá nesta minha lista foi o Velvet Underground and Nico, o clássico primeiro disco da banda de Lou Reed, com a capa conceitual de Andy Warhol, aquela icônica banana com um fundo branco. Acho que este é o verdadeiro início desta história. Quando eu comecei a desejar este disco.

Eu sempre voltei do trabalho para casa a pé. É uma caminhada longa, mas andar me relaxa. Sempre faço o mesmo trajeto, sem fazer paradas nem nada assim. Com exceção de um dia. Um dia que mudou minha vida.

Fazia eu o mesmo trajeto de sempre. Em determinado trecho, sempre passava por um prédio muito antigo com várias portas, sempre fechadas. Devia ser um desses prédios comerciais com várias lojinhas, mas que deve ter sido desativado e está abandonado, fechado há anos. As paredes estão podres, o reboco todo descascado, pichações e pedaços de cartazes colados e arrancados várias vezes…Mas naquele dia, uma das portas deste prédio estava aberta. Uma luz fraca iluminava o interior. Olhei para dentro com curiosidade e acabei parando. Era um sebo. Algumas prateleiras nas paredes continham pilhas e pilhas de discos e apenas uma pequena prateleira com vários livros amontoados, aparentemente, sem organização nenhuma. Num pequeno balcão, um senhor de muita idade lia um livro muito compenetrado, seus lábios se mexiam, como se ele estivesse lendo em voz alta, mas não fazia nenhum som. Vez por outra, balbuciava alguma palavra. Ao lado dele, uma dessas vitrolinhas que viram uma maleta quando fechadas, tocava um disco do Serge Gainsbourg. Da porta, pensei com uma excitação exagerada: “É aqui que eu vou achar o meu Velvet Underground!”. Dei um passo a frente e entrei no sebo, já arregaçando as mangas para começar a mexer nos discos.

Olhei para o senhor no balcão e disse: “Boa noite. Ainda está aberto? Posso dar uma olhada nos discos?”. O velho apenas ergueu os olhos, fixando-os em mim e fez um sinal afirmativo com a cabeça. E voltou para a sua leitura. De cara percebi que perderia um tempão ali, mas vi que tinha potencial A desorganização era tremenda. No primeiro punhado de discos que peguei passei por dois discos do Nelson Ned, um do Tchaikovsky, o Qualquer Coisa, do Caetano, o Killers, do Iron Maiden, Kick Out The Jams, do MC5…entre outros. Ou seja, nada de separação por estilo ou ordem alfabética. Mas tinha muita coisa rara e resolvi me entregar à busca.

Fiquei mais de uma hora fuçando naqueles discos. Meu nariz já começava a escorrer, de tanto poeira que havia no lugar. Mas, é claro que, à medida que eu ia mexendo nos discos, separava um ou outro para decidir depois se compraria ou não, dependendo do valor. Como o lugar era pequeno, depois de uma hora e meia, já tinha visto quase tudo. Faltava apenas uma pilha de discos que estava no chão, embaixo da prateleira dos livros amontoados. Me sentei no chão e comecei a ver aqueles discos. No meio daquela pilha, finalmente achei o que procurava. Aquela capa branca como uma banana estampada e a assinatura do Andy Warhol. Fiquei ali sentado sorrindo olhando para aquela capa. Fui interrompido pelo velho que disse: “Quer colocar esse para tocar?” “Claro!” respondi me levantando e entregando o disco a ele. Vem aquele chiado delicioso e começa a doce guitarra dedilhada de Sunday Morning. Voltei a me agachar para arrumar os discos que tinha espalhado ali no chão. Enquanto recolhia os discos, olhei de relance para a prateleira e vi um livro muito familiar. Era o  Escaravelho do Diabo, uma história policial de uma série de livros infanto juvenis. Foi um dos primeiros livros que li quando criança e adorei o tom de mistério. Tomei gosto pela leitura com aquele livro.

A edição que estava ali era muito antiga, com as páginas meio amareladas. O velho disse, sem tirar os olhos do livro que lia: “Este aí devia virar filme, é uma história muito boa.” “Concordo com o senhor. Sempre pensei que essa história daria uma ótimo filme.”. Me diverti com a coincidência de eu e aquele senhor termos a mesma opinião sobre um livro juvenil. Comecei a observar os outros livros daquela prateleira e me deparei com vários títulos conhecidos meus. Para Viver um Grande Amor, do Vinícius de Moraes, a autobiografia do Johnny Cash… a cada título conhecido, aumentava minha perplexidade com tamanha coincidência. Até que me deparei com O Romance Morreu, uma coletânea de crônicas do Rubem Fonseca. Um livro que eu ganhei de presente de uma amiga muito especial. Peguei o exemplar e o abri. Logo ali, na primeira página, estava a dedicatória que ela escrevera para mim. Com o susto, deixei o livro cair. O velho, sem tirar os olhos de sua leitura resmungou: “Cuidado, garoto.  Esses livros são importantes para mim.”. Tentei me desculpar, mas minha voz não saiu. Já era Venus in Furs que tocava aumentando minha confusão com aquela microfonia ininterrupta. Continuei olhando atônito para aquela prateleira. Até que vi um livro sem título nenhum. Entre tantos livros conhecidos, um que não me parecia nada familiar chamou minha atenção. Abri e vi que, na verdade, era um álbum de fotos. Fotos minhas.  Minha infância. Vi a foto onde eu e meu primo, então com seis ou sete anos, no sítio do meu pai cobertos de lama subindo num pé de manga. Também tinha fotos da minha adolescência, a turma do colégio fazendo churrasco. Uma foto minha tocando bateria numa das minhas primeiras aulas, aos 14 anos. Eu com alguns amigos nas escadas da faculdade. Fotos de garotas por quem eu fui apaixonado, mas nunca consegui me declarar.

“Onde o senhor conseguiu essas fotos?” perguntei, tentando esconder um misto de pavor e braveza que me mastigava por dentro. Ele me olhou com curiosidade e disse: “Isso é meu. É o meu legado. Tudo aqui é o meu legado!” “O que o senhor quer dizer com isso? Como assim é o seu legado?” “Tudo que eu tenho está aqui. Não só o material. Meus sentimentos, meus medos, meus sonhos…está tudo aqui. Entre discos e livros. Faz parte das escolhas que eu tomei ao longo da minha vida.” “Que escolhas?” “Eu deixei de acreditar em muita coisa. No amor das pessoas, na fraternidade. Desisti de viver em sociedade porque achava os padrões sociais todos errados. Fui me afastando das pessoas. Aluguei essa sala aqui há muitos anos e passei a guardar os discos e livros que comprava. Também a passar horas aqui lendo e ouvindo música.. Claro que eu saía para ir ao cinema, ou alguma coisa assim, mas acabava sempre voltando…até que acabei me mudando para cá.” “E o senhor não conversa com ninguém? Não vem muita gente aqui para comprar discos? O senhor tem ótimos títulos…coisas raras do Bowie, Grand Funk Railroad…” “E quem disse que eu quero vender meus discos?” “Mas…então, por quê o senhor me deixou entrar e revirar tudo?” “Porque eu vi sua tatuagem.” “Minha tatuagem…o que tem ela?” é uma tatuagem que tenho no antebraço, o bumbo do Sgt. Pepper’s, dos Beatles. Ele arregaçou a manga da blusa de lã que vestia e me mostrou uma tatuagem idêntica. Fiquei paralisado, perplexo.

“Você já ouviu falar que, quando você toma uma decisão importante, um pedaço de você se solta? Como se nascesse ali um fantasma de você mesmo que toma o rumo oposto do que você decidiu?” “Não…” Aquilo estava começando a ficar assustador. “Bom, você vai ouvir falar disso logo…eu li essa teoria em algum livro por aí…Bom, o fato é que eu não sei se você é o fantasma ou se sou eu.”. Ao dizer isso ele sorriu com ironia, e All Tomorrow Parties que tocava na vitrola chegava ao fim, encerrando o lado A do disco. Ficamos ali naquele silêncio olhando um para o outro por alguns segundos. Calmamente, ele se vira de lado, troca o disco de lado e coloca a agulha. Começa a tocar Heroin. Penso se devo ir embora, olho para a porta. E o velho se volta para mim e começa a dizer:

“Olhando para trás, eu percebo que eu não quis me adaptar. Mas não sei te dizer exatamente onde eu errei. Se é que eu errei. Não sei em que ponto eu desisti de ter alguma meta. Na verdade, eu só não quis me sujeitar a padrões, eu quis fugir de tudo… eu quis fugir de tudo e de todos. Você pode me perguntar se, com isso tudo, eu consigo ser feliz. Honestamente, eu consigo sim. Eu gosto de ler, gosto de boa música, gosto de café sem açúcar, gosto de ter uma vizinhança tranquila, gosto de andar de madrugada e passar por lugares que me tragam memórias…” Ele faz uma pausa e fica olhando para o teto, como se procurasse as palavras nas manchas de bolor em volta da lâmpada. Neste momento, começa a tocar I’ll Be Your Mirror. Ele volta a olhar para mim e diz: “Agora, se tudo poderia ser diferente, se eu poderia ser mais feliz…isso eu nunca vou saber. Talvez, com o tempo, você descubra e passe aqui para me visitar e me dizer como as coisas aconteceram para você.” Mais um sorriso escorrendo ironia. “Agora vamos ficar em silêncio, porque o final deste disco é maravilhoso.”.

Eu volto a me sentar no chão e vou folheando o álbum de fotografia. Passo por boa parte da minha vida. Enquanto isso, The Black Angel’s Death Song e European Son rolam na vitrola num volume mais alto que o normal. Quando o disco acaba, o velho volta a colocar o disco do Serge Gainsbourg que rolava antes e volta a se concentrar na sua leitura. Sentado, consigo ver a capa do livro que ele está lendo. É o On The Road, do Kerouac. Sorrio pensando: “Será que eu vou ficar velho e continuar relendo esse livro pela milésima vez?”. Enquanto penso nisso, fecho o álbum de fotografias. Quando vou coloca-lo no lugar, sai do meio dos livros um rato. Eu me assusto, me levanto num impulso e, cambaleando, dou três passos para trás e estou na calçada, fora da loja. O velho se levanta, fecha a vitrola, apaga a luz, fecha a porta e se vira para mim dizendo “Boa noite.” Com uma naturalidade absurda e sai andando. Fico atônito ali parado. Até que me recomponho e vou embora.

Nos dias seguintes, passo pelo mesmo lugar e a porta está sempre fechada. Já parei, bati na porta, tentei achar alguém que more ali e que tenha visto aquela porta aberta… e nada. Com o tempo, tento concluir que aquilo foi um sonho, um devaneio maluco depois de um dia estressante no trabalho… qualquer coisa assim.

Alguns anos depois disso, eu já tinha mudado de emprego, feito faculdade e trabalhava numa empresa bacana. Atualmente tenho um bom cargo, com um bom salário. Não trabalho na área que estudei na faculdade, mas não me importo com isso. Ganho um bom dinheiro e me divirto. Moro sozinho num apartamento no centro da cidade, tenho meus discos, meus livros… Quando voltava para casa, passei pela praça que fica a duas quadras do prédio onde moro. Ali, um cara meio hippie tinha um pano no chão e vendia algumas pulseiras de miçanga e um punhado de discos velhos. Entre eles estava o Velvet Underground and Nico. Olhei para o disco e senti meu corpo gelar. O cara me falou: “Legal este disco do Velvet, hein…te vendo por dez conto.”. Imediatamente, olho para o braço do rapaz procurando alguma tatuagem. Não tem nenhuma. Sinto-me aliviado. Resolvo comprar o disco.

Após tanto tempo procurando esse disco, resolvo comemorar a aquisição. Entro num bar, muito cheio por ser um fim de tarde de muito calor. Enquanto estou encostado no balcão tomando meu chopp e lendo a contra capa do disco, sinto alguém atrás de mim, me observando. Meu corpo gela de novo… é ele. Aliás… eu. Me viro bruscamente e é uma garota. Me olhando curiosa, com uma bolsa vermelha grande pendurada no ombro. Ela se desculpa. “Foi mal. Fiquei curiosa. Nunca vi esse disco antes.” “Velvet Underground. Não conhece?” “Não. É banda nova?” Sorrio aliviado e, levemente encantado pela garota inocente na minha frente me perguntando sobre um dos discos mais importantes da história do rock n’ roll. “Velvet é tipo o pai dos Strokes.” “Ah, legal! Strokes eu conheço. Acho muito bom” “Eu acho que preciso de mais um chopp. Você quer?” “Claro.”

Agora está amanhecendo. Vejo a bolsa vermelha dela na mesa e ela nua dormindo na minha cama. Enquanto vou fazer café, coloco o Velvet Underground para tocar. Olho de relance pela janela e vejo o velho da loja parado na esquina. Ele aponta para mim sorrindo, me faz um sinal de positivo. Joga a ponta do cigarro que fumava no chão, vira as costas e sai andando até sumir no horizonte enquanto na vitrola toca Sunday Morning.

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A ESPERA

03:14

Eu adoro ficar em casa de bobeira, sem ter o que fazer. Posso escolher se vou ver um filme, ou pensar em aprender a tocar canções do Steve Wonder ou do Bob Dylan. Mas fazer uma caminhadinha leve também é agradável em noites quentes como a de hoje. Então escolho por andar até o terminal rodoviário, ao invés de pegar o ônibus no ponto que fica a duas quadras de casa.

Apesar de admirar e curtir a agitação incessante de grandes metrópoles, me agrada andar no centro da cidade pequena onde moro e perceber as ruas quietas e vazias por já passar das dez da noite. O silêncio e a brisa da noite ajudam a aplacar o calor e relaxar a mente. Ainda bem que resolvi não trazer o iPod.

Chego ao terminal pensando o quão adiantado eu estou. Acredito que terei uma longa espera pela frente.

 – Quanto é a passagem?

 – Dois e cinquenta

 – Tá na mão.

 – Obrigado. Boa noite.

 – Por favor, qual o ônibus que eu pego para chegar na rodoviária? – Porra, eu já fui melhor nisso. Antigamente andava pra cima e pra baixo de ônibus e conhecia a maioria das linhas…

 – Aquele parado à esquerda ali.

 – Valeu. Boa noite.

02:56

Eu gosto de andar de ônibus. Claro. Exceto quando está lotado, aí é ruim. Mas quando está tranquilo, tem lugar livre para sentar, é bem legal. Gosto, especialmente, de pegar o ônibus de volta para casa quando vou ao cinema sozinho. Passo todo o trajeto pensando no filme assistido. Quando eu namorava era bom também, afinal era ótimo poder falar sobre o filme e não só pensar. Ela era uma excelente companhia.

Por falar em namoro, não posso deixar de ouvir a conversa do rapaz que está sentado atrás de mim. Ao telefone, ele nitidamente fala com a namorada. Mas num tom nem romântico, nem tedioso. É meio desleixado. Aquele tom de conversa de namoro que está acomodado, correndo o risco de acabar. Eu sei bem como é…

02:38

A rodoviária mudou muito pouco nesses últimos anos. Fizeram essas salas de espera fechadas com ar condicionado, para proteger tanto do calor quanto do vento forte e frio que sopra tarde da noite. Mas hoje tais salas não são necessárias. A noite está fresca. Uma vez na rodoviária, só há uma coisa que eu preciso: um café.

Entro na lanchonete.

 – Boa noite. Um cafezinho, por favor.

 – Aqui está. Açúcar, adoçante…

 – Não, obrigado. Eu prefiro puro. Quanto é?

 – Acerte ali no caixa, por favor.

 – Ok.

 – Boa noite. Um café.

 – Mais alguma coisa.

 – Não. É só.

 – Um e cinquenta.

 – Aqui está. Trocadinho.

 – Que bom. Puxa, eu que precisava de um café…para despertar, sabe…

 – Café é sempre uma boa pedida. Posso me sentar ali? O ônibus que eu estou esperando ainda vai demorar.

 – Claro. Fique à vontade.

Me sento de frente para a TV. Segundo tempo de Cruzeiro e Santos. Jogo chato. Deve ser importante, porque tá uma correria e nego cavando falta adoidado. Penso se não deveria ter prolongado a conversa com a mocinha do caixa. Ela estava parecendo querer papear. Mas desencano. Acho que eu é que não estou muito afim de papo. Assisto uns quinze minutos do jogo, me levanto e saio.

02:11

Caminhando lentamente pelas dependências da rodoviária para fazer hora, começo a me lembrar de tantos momentos que passei por ali esperando. Sempre gostei do namoro à distância. Passava a semana toda com aquela saudadinha gostosa apertando o peito. Aí, na sexta feira de noite, eu ficava lá esperando o ônibus chegar e vê-la descendo com carinha de cansada, mas sorrindo para mim. Ou das vezes que eu chegava com mala na mão, livro na outra, comprava uma garrafa d’água e embarcava para ir ao encontro dela. Bons tempos.

Bom, pelo menos a lanchonete é nova e o café é melhor do que era naqueles dias.

01:59

Engraçado como eu tenho pensado nela esses dias. Domingo, passei o dia ouvindo os discos da Colbie Caillat que ela sempre gostou. Na segunda pensei nela não me lembro bem porquê. Ontem assisti uma dessas comédias românticas e a personagem da Natalie Portman tinha um comportamento parecidíssimo com o dela no começo do nosso namoro. E agora eu aqui nessa rodoviária cheia de lembranças para me entreter.

Já faz mais de um ano que terminou. Nem parece que faz tanto tempo. E é meio louco pensar que fui eu quem tomou a iniciativa de terminar. Me orgulho de ter terminado de maneira honrosa. Terminou porque eu não a amava mais e não era justo comigo e nem com ela continuar num relacionamento sem sentimento verdadeiro. Fiz questão de terminar numa conversa pessoalmente. E não por telefone ou Skype. Pessoalmente. E, que merda…como ela chorou. Foi difícil.

E mesmo eu fazendo tudo certinho, eu saí como filho da puta da história, como cafajeste. Inclusive minha mãe acha isso. Que eu sacaneei minha ex de alguma maneira. É. Eu sei que elas andaram conversando depois do fim do namoro. Minha mãe sempre gostou muito dela e…

01:47

Peraí!

Será que tem armação aqui? De todas as vezes que a minha mãe foi e voltou de ônibus pra casa da minha irmã, nunca me pediu para ir espera-la na rodoviária. E agora essa conversa de eu ir até lá para ajudar com as malas que ela está trazendo, que estão muito pesadas. Muito estranho.

Será possível que elas conversaram e ela está vindo junto? Era só o que me faltava! Mas não é impossível Minha mãe me ligou pedindo que eu fosse encontra-la na rodoviária quando já estava na estrada, a caminho daqui. Pode ser que elas tenham se encontrado no ônibus e minha mãe me ligou para forçar um encontro “casual”.

Começo a olhar para os lados. Se a ela está vindo para cá, é para visitar alguém. Mas ela não tem família aqui. Só uma amiga. Aliás, nossa amiga em comum. Fico esperando aparecer um rosto conhecido a qualquer momento. Começo a ficar tenso.

01:29

Há dois dias eu estava, pela primeira vez neste mais de um ano de fim de namoro, me questionando se fizera a coisa certa. Ela era tão companheira, tão verdadeira. Tão meiga, mulher com jeitinho de menina. E o sexo era tão bom…

Olho para o banco onde sentamos na noite em que completamos um mês de namoro. Ela desceu do ônibus e, me fez sentar ali antes de pegarmos o táxi para a casa. Eu levei um buquê de flores. Ela me entregou um porta retrato com duas fotos tiradas no nosso primeiro fim de semana juntos. No verso de cada uma, declarações muito singelas. Poucas vezes me senti tão amado.

Será que eu ainda sinto alguma coisa por ela? Por que esse sentimento demorou tanto para aparecer?

Calma! Não é nada disso. Isso é carência. É nostalgia…é só pensar em outra coisa. Não faz o menor sentido ela vir pra cá numa quarta feira de noite! E eu falei com a aquela nossa amiga em comum ontem e ela não disse nada sobre receber visitas. É loucura!

01:01

O sistema de som da rodoviária toca um disco inteiro do Abba. Deve ser esses Greatest Hits da vida. Não que eu não goste. Acho bonitinho. Mas prefiro a evolução deles: os Cardigans. É tipo o Big Star e o Teenage Fanclub…

Enfim.

A primeira vez que fui com ela ao teatro, foi para ver a montagem nacional de Mamma Mia!, o musical com as canções de quem? Exatamente! Abba!

Fico imaginando qual vai ser a minha reação ao vê-la descendo do ônibus. Qual vai ser a reação dela.

 – Não acredito! Você por aqui!? – Que puta clichê!

 – É. Encontrei sua mãe na rodoviária. Coincidência, né? – Ela fala e me olha meio seca, receosa, esperando meu próximo passo.

 – É…eu…Putz. Que loucura, né? – Eu gaguejo. – É engraçado. Esses dias, andei pensando bastante em você… – Ela tenta disfarçar um sorriso. Sem sucesso. O sorriso é nítido.

 – Que legal. Bom, Devem estar me esperando no carro lá na frente.

 – Ah, sim. Lá na frente. Claro!

 – Então…

 – Acho que a gente podia tomar um café, colocar a conversa em dia…

 Fico imaginando esse diálogo. Quase consigo ver a velha mala roxa dela aos seus pés. O casaquinho preto da Zara no braço. Imagino aquele olharzinho de desaprovação, que ela fazia quando não gostava da camiseta que eu estava usando, ao ver minha nova tatuagem no braço direito.

E eu até sinto saudade daquele olharzinho de reprovação.

00:53

Se eu não tivesse parado de fumar há seis meses, já teria fumado meio maço. Que porra de atraso desse ônibus! Já era pra estar chegando e acabar com essa agonia. Ela está naquele ônibus ou não está?

Vamos pensar racionalmente. Ela não está no ônibus. Minha mãe teria me dito. Não é do feitio dela esses joguinhos. Se elas tivessem se encontrado no ônibus, ela me diria.

Enquanto penso nisso, vou até a frente da rodoviária e procuro algum carro conhecido.

Só pra garantir, né?

Deve faltar uns quinze, vinte minutos para o ônibus chegar. Será que ela já estaria aqui a essa hora. Ela dá umas atrasadinhas às vezes.

Bom. Vamos pensar em outra coisa. Volto para dentro da rodoviária e me sento. Nada melhor para esvaziar a cabeça que o bom e velho Angry Birds no celular.

Jogo uma porção de partidas até que empaco em uma e acabo desistindo.

Teve um fim de ano que fizemos uma viagem de navio, desses que tem cassino e tal. Lembro que tinha lá no meio dos caça-níqueis e roletas uma dessas máquinas com uma garra e várias pelúcias dentro, para você tentar pegar uma.

Gastei uma grana ali tentando pegar para ela, uma pelúcia do pássaro amarelo do Angry Birds. Falhei miseravelmente, mas ela não ligou. Ela sabia ser parceira.

E o Abba não para. É Dancin’ Queen na cabeça!

00:31

Fico imaginando se minha mãe e ela conversaram durante a viagem. Será que minha mãe contou que eu parei de fumar, dei uma emagrecida… Que estou mais sério, mais responsável… sabe, tentando fazer com que eu pareça um cara melhor do que eu era?

Mas ela gostava de mim daquele jeito. Claro que, por causa dela, eu passei a beber bem menos e tentei parar de fumar por um tempão. Mas nós bebíamos juntos e curtíamos muito. Em um aniversário dela, tomamos várias tequilas e fomos pra casa bem bêbados. Foi uma noite ótima.

Será que minha mãe falou dos meus excessos depois do fim do namoro? Das razões que me fizeram parar de fumar?

Será que eu confundi falta de amor com necessidade de um pouco de liberdade? Será que eu terminei porque estava me sentindo oprimido, e isso fez com que eu achasse que o amor acabara?

Putz! Será…?

Mas não é justo! Se fosse isso, esse grilo teria pintado bem antes.

Porra, já faz mais de um ano!

00:17

Que ônibus mais demorado é esse?! Já é quase uma da manhã. Volto a caminhar. Ando até a plataforma onde o ônibus costuma parar. Separando o acesso à plataforma de embarque, tem uma cerquinha na altura do peito. Me encosto ali e me lembro das despedidas.

Beijos apaixonados, aquela cerquinha entre eu e ela, olhares apaixonados entre nós e juras de “Já estou com saudades!” Aí ela entrava e eu ficava ali apoiado vendo ela embarcar, a porta se fechar e o ônibus sair.

Também me lembro de uma foto que tirei antes de eu embarcar para ir passar o fim de semana com ela. Apoiado naquela cerquinha, tirei uma selfie segurando a água e o livro dos Beatles que ela me deu de presente e eu estava lendo, e escrevi algo do tipo: “Pegando a estrada para ver meu amor.” ou algo do gênero. Ainda deve estar lá no meu Instagram.

00:09

E se ela, ao sair do ônibus, me ver e começar a chorar?

Será que eu vou conseguir falar com ela? Dizer que estive pensando nela e que gostaria de conversar?

00:06

Não sei. Acho que ela ficaria cética ao me ver. Me trataria com frieza.

E eu perguntaria para ela se eu poderia abraça-la. Ela faria um sinal afirmativo com indiferença.

Eu diria que estou com saudade e adoraria conversar.

E ela me diria “Ok. Tanto faz. Vamos ver”. E correria para abraçar alguém que chegaria logo atrás de mim.

Eu não sei como eu reagiria.

00:04

Eu não sei o que eu sinto por ela.

Ainda sinto?

00:03

É carência. Só pode ser!

00:02

É ele. O ônibus chegou!

Está entrando na rodoviária!

Será que ela está lá dentro?

00:01

O ônibus para na plataforma e a porta, lentamente, começa a se abrir.

00:00

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AS PENAS


Um conto inspirado na HQ “Penas”, de Laerte Coutinho, publicada na revista Chiclete com Banana em 1988.

Carlos acabara de se formar em engenharia civil. Entusiasmado, ele buscava uma oportunidade de emprego, confiante de que conseguiria uma boa vaga, pois seu currículo era um dos melhores da turma, com ótimas notas e estágios onde fora muito bem recomendado. Numa noite, ao se deitar para dormir, sentiu alguma coisa espetando suas costas, próximo aos ombros. Pensou ter se deitado em cima de qualquer coisa, mas não havia nada na cama. Intrigado foi até o banheiro e, de costas para o espelho, olhou por cima do ombro e viu algo como pequenas penas saindo de dois pontos de suas costas, logo abaixo dos ombros.

Nessa noite acabou dormindo de barriga para baixo. Ao acordar de manhã voltou a olhar-se no espelho e constatou que as penas cresceram um pouco mais. Vestiu-se e foi de bicicleta ao pronto socorro mais próximo. No hospital, o médico que o atendeu ficou assustado, era um jovem residente. Chamou seu supervisor, um médico mais velho, que era professor. Tal qual o jovem, o professor não soube o que fazer, afinal, para que especialidade se encaminha um paciente em que estejam crescendo penas em suas costas? A história correu o hospital, depois correu outros hospitais e clínicas da cidade. Até que a notícia de um homem com penas nas costas chegou até o doutor Hildebrando Petrolino Motta, Doutor Motta para os amigos.

Doutor Motta era um médico sério e reservado, muito conceituado em todo o país. Com seus 74 anos de idade e mais de 50 de profissão, acumulara uma fortuna invejável e já estava aposentado. Mas quando soube da história de Carlos, solicitou a um amigo que lhe emprestasse seu consultório no centro da cidade e entrou em contato com Carlos, marcando uma consulta. Nessa altura, já havia passado um mês e meio desde o aparecimento das primeiras penas. Agora Carlos já carregava nas costas um par de asas de tamanho médio, praticamente do tamanho de seu torso, com penas claras, levemente acinzentadas, que ele tentava manter o mais fechadas possível, usando roupas largas para disfarçar tal volume.

No consultório emprestado, Doutor Motta recebeu Carlos com todas as janelas fechadas e sem recepcionista ou secretária. Convidou-o a entrar numa sala com uma maca. Ali pediu que ele tirasse a camisa. Analisou as asas e fez os exames de praxe que qualquer médico sempre faz. Mediu pressão, escutou os pulmões, coração, apalpou fígado, conferiu reflexo dos joelhos e até fez um exame de acuidade visual. Ao terminar disse:

– Estás com uma saúde de ferro, senhor Carlos.

– Mas e as asas?

– Também estão bem. Já tentou usá-las?

– De jeito nenhum! Ainda que eu consiga voar, o que dirão quando me virem? Me tratarão como uma aberração.

– Não é aberração, senhor Carlos. Mas sim evolução. O senhor é capaz de guardar segredos?

– Claro, sempre fui confiável… mas… evolução?

Doutor Motta calmamente tirou seu jaleco e sua camisa. Carlos olhava com espanto Doutor Motta sem camisa, abrindo atrás de si um vistoso par de asas que, fechadas lhe caíam até os joelhos, e abertas eram maiores que seus braços, e tal qual as dele, eram penas claras e acinzentadas. Ele estava estupefato.

– Senhor Carlos, somos poucos no mundo ainda, mas entendemos que isso faz parte de uma evolução. Podemos voar, temos nossa visão e o raciocínio um pouco acima da média da humanidade. Hoje à noite lhe apresentarei a alguns amigos.

Naquela noite Doutor Motta buscou Carlos e foram em seu carro, com um chofer impávido e silencioso dirigindo, até uma mansão afastada da cidade aproximadamente 50 quilômetros. Ao entrar, foram até um salão imenso e com pouca iluminação, onde uns quarenta homens, todos aparentando ter mais de cinquenta anos de idade conversavam em pequenos grupos. No meio do salão, uma mesa comprida com queijos finos e canapés e muitas garrafas de vinho e uísque.

Doutor Motta foi de grupo em grupo apresentando Carlos, que era sempre recebido com um forte aperto de mão e sorrisos, olhos brilhando, todos emocionados por receber em seu grupo alguém tão jovem.

A reunião foi noite adentro com muita bebida sendo consumida. Carlos conversou com muita gente, contou sua história e ouviu a história de muitos, histórias bem parecidas com as suas. Em certo ponto da madrugada, uma grande porta lateral foi aberta e todos foram animados para o jardim. Sob o luar, todos tiraram suas camisas e alçaram voo. Carlos, inseguro, fez o mesmo. Tirou a camisa, abriu as asas e deu um forte impulso. Quando se deu conta, planava alto, como se soubesse voar desde criança. Poucas vezes sentiu-se tão bem. Na verdade nunca se sentira tão bem antes em toda sua vida.

Depois daquela noite, Carlos passou a frequentar semanalmente as reuniões naquela mansão, que ele não sabia exatamente a qual dos senhores ela pertencia. Mas isso não importava. Duas semanas depois de sua primeira reunião acertou com um de seus companheiros alados, que também era engenheiro, um emprego em sua construtora. O salário era bom, as reuniões eram ótimas voando na madrugada meio embriagado… até que, como qualquer jovem, sentiu sua libido clamar. Mas como abordar uma garota e fazê-la entender sua condição evolutiva? Foi pedir conselho a seus companheiros e constatou aterrorizado que todos eram solteiros e muito raramente faziam sexo. Quando o faziam, tinham todo um mecanismo.  Primeiro, pagava-se bem uma garota de programa de luxo e estabelecia com ela que tudo seria feito com luzes apagadas e sem mudança de posição, seria sempre ela por cima, desta forma, o homem poderia deitar-se sobre suas asas, escondendo-as, e sempre ressaltavam às garotas: Nem tente me abraçar.

No início, ficou consternado por ter que viver uma vida de quase celibato, mas com o tempo, acabou se acostumando. Dedicado no trabalho, como a maioria de seus amigos alados, diga-se, enriqueceu rapidamente. Com amigos de asas em diversos setores da sociedade, tinha ótimos contatos, sempre fazia bons negócios e divertia-se muito. Adaptou-se bem a vida de solteiro, esporadicamente pagando por sexo, mas frequentemente flertando com várias mulheres que o achavam atraente e charmoso, por ser tão reservado, e acabava conseguindo, vez ou outra, trocar carícias sem ter que tirar a camisa.

Oito anos se passaram desde que suas asas começaram a aparecer. Carlos agora estava com trinta e quatro anos, já tinha sua própria empresa, uma firma de consultoria a grandes construtoras. Foi então que suas penas começaram a cair. Primeiro, ao tomar banho, Carlos viu umas quatro ou cinco penas o chão do box. Daí em diante, punhados de penas caíam diariamente. Desesperado, procurou seus colegas que, passaram a fechar suas portas sem sequer conversar com ele.

Compreensível. Carlos ascendeu muito rápido. Enriqueceu, era astuto, jovem, voava mais alto que os outros, fazia acrobacias e tinha jeito com as mulheres sem se expor. Isso causou inveja aos senhores, que levavam suas vidas com conforto, mas sem tanta leveza. Tudo era sisudo e misterioso. Quando as penas de Carlos caíram, todos acharam que era um sinal de que ele não era digno, era apenas um acidente da natureza e não um ser evoluído.

Certo dia, ao voltar de uma reunião em outro estado, Carlos estava no banheiro do aeroporto urinando, para em seguida pedir um Uber e enfrentar o longo caminho com trânsito pesado para voltar para casa. Enquanto lavava as mãos e se preparava para sair, um rapaz mais ou menos da sua idade, o cutucou e disse sorrindo:

– Amigo, isso é seu?

Em sua mão direita o rapaz mostrava uma pena clara acinzentada. Carlos foi tomado pelo pânico, será que o rapaz vira algo? Ele se descuidara desta maneira no banheiro? Percebendo o desespero que dominava Carlos, o rapaz ainda sorrindo falou:

– Se acalma, cara. Eu também já tive dessas. Vem, vamos tomar uma cerveja.

Se sentaram num bar no vasto saguão do aeroporto, cada um com um chopp a sua frente.

– Foi mal, eu não queria te assustar. Meu nome é Marcelo. Você é o Carlos, né? Eu sei de você faz um tempo, mas queria ter certeza antes de te procurar. Agora que suas penas estão caindo, sei que você é um de nós. Suas penas vão voltar a crescer, fica tranquilo. Quando isso acontecer, você me manda uma foto e a gente volta a conversar. E não esquenta com aqueles velhotes, eles não sabem de nada. Ah, sim! E mais cuidado daqui pra frente onde você deixa cair suas penas.

O rapaz deixou um cartão com seu nome e número de telefone na mesa, virou seu copo de cerveja, apertou a mão de Carlos e saiu.

Um ano se passou. Todas as penas de Carlos caíram. No lugar, cresceram novas penas. Ainda maiores e mais bonitas, e desta vez, eram azuladas, ao invés de acinzentadas. Ele pegou seu celular e mandou uma foto para Marcelo. Ele responde com uma mensagem de texto: “Excelente, cara! Amanhã você recebe uma carta nossa.” No dia seguinte, Carlos recebe um envelope sem remetente. Dentro um bilhete: Te esperamos depois de amanhã. Junto, uma passagem de avião para Östersund, na Suécia. Mas seu destino final seria a cidadezinha de Skyttmon, quarenta quilômetros de distância do aeroporto de Hallviken.

Hoje completa um mês que Carlos está morando em Skyttmon. Ele saiu cedo de casa para trabalhar. Vestiu seu terno adaptado, deixando suas asas livres, alçou voo da sacada do seu apartamento e voou para o trabalho, passando por uma meia dúzia de colegas alados, eram todos jovens sorridentes, homens e mulheres, e de penas azuladas. Ele volta para casa por volta de oito da noite, mas o dia ainda é claro e limpo, já que no verão, anoitece muito tarde por lá. Ele se prepara para sair para jantar com uma garota que conheceu há duas semanas. Pretende pedi-la em namoro no jantar, enquanto explica a ela, que esse papo de evolução é besteira. Ele só e diferente de outros caras por um detalhe, uma vantagem, por que não dizer? Mas não se sente superior. Tudo corre como planejado. Com o dia escurecendo, eles voltam para casa dele voando, ela montada nas costas dele sorrindo com os cabelos esvoaçantes e uma garrafa de vinho Bordeaux na mão esquerda.

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