Cinema

DE UM JEITO DIFERENTE PARA 2017

Texto publicado em dezembro de 2016 no Diários do Sudoeste.

Em 1996 eu tinha 14 anos de idade. Um tempo de descobertas, onde determinadas obras de arte mudaram a minha vida, ajudaram a moldar minha personalidade e meus princípios. Eu ainda não tinha lido o On The Road do Jack Kerouac, mas já tinha ouvido o Nevermind do Nirvana, já considerava o Vinícius de Moraes o maior poeta brasileiro, já tinha ido a alguns shows de rock e começava a fazer aulas de bateria. Já era um consumidor voraz de filmes, mas poucos haviam me marcado, como Assassinos por Natureza e The Doors, ambos do diretor Oliver Stone. Até que numa madrugada de insônia, um filme totalmente diferente dessa pegada de violência, rock e contra cultura me arrebatou.

Eu estava de madrugada zapeando os canais até que parei num filme que estava começando, os créditos apareciam enquanto uma música clássica tocava e trilhos de trem deixados para trás eram mostrados em cena. O título original: Before Sunrise, em português, Antes do Amanhecer. Escrito e dirigido por Richard Linklater, o longa fora lançado um ano antes, mas não teve grande repercussão e acabou virando um desses filmes cult. O filme me prendeu desde os primeiros diálogos. Me identifiquei muito com o Jesse, personagem do Ethan Hawke, que, mesmo cheio de insegurança, tentava impressionar a charmosa e inteligente Celine, personagem de Julie Delpy.

Este filme me encantou de tal maneira que passei a aluga-lo na locadora de filmes (sim, outros tempos, né… rebobinar a fita pra não levar multa e tal… lembra disso?) com muita frequência. Muito tempo depois, quando ele saiu em DVD, não perdi tempo e garanti uma cópia para mim. Vieram depois as belíssimas sequências, Before Sunset (Antes do Pôr do Sol), lançado em 2004, e Before Midnight (Antes da Meia Noite), lançado em 2013, e a minha paixão pela história do Jesse e da Celine só aumentou!

Pulamos para agosto de 2016. 20 anos depois de eu ter assistido o Before Sunrise pela primeira vez. Recebo a notícia que farei uma viagem à Europa com os meus pais e minha irmã. O roteiro, quatro cidades do leste europeu: Praga (República Tcheca), Budapeste (Hungria), Cracóvia (Polônia) e Viena (Áustria). Para quem não assistiu o filme ou não se deu conta por algum motivo, o Before Sunrise é todo filmado em Viena! Eu sempre sonhei em andar por Viena, passar por cada lugar onde meus personagens favoritos caminharam. E agora, eu poderia realizar isso. Fiz uma pesquisa no Google e localizei a maior parte das locações, algumas delas, lojas, bares e cafés que ainda estavam abertos desde a época das filmagens do filme, entre 1994 e 1995.

Dia 10 de outubro, embarcamos no avião em São Paulo com destino a Praga. No dia 15 chegamos a Viena. Caminhar por Viena, desde a minha chegada lá, foi uma experiência bem difícil de descrever. A minha impressão é que eu já conhecia aquela cidade de alguma maneira. Há de se dizer que a capital austríaca é uma cidade linda, com uma riqueza cultural sem precedentes, mistura moderno e clássico, cheia de parques e muitos encantos. Com tantos atrativos, pelo fato de estar na companhia de meus pais e minha irmã, tinha que dividir meus interesses com os deles. Assim, fui selecionando as locações que eu fazia muita questão de conhecer, pois já percebia que não teria tempo para ir a todos os lugares.

Minha primeira parada foi a loja de discos usados onde Jesse e Celine escutam a bela canção Come Here, da cantora folk Kath Bloom. A loja está lá desde as filmagens do filme, intacta, com as mesmas prateleiras e várias surpresas sobre as filmagens ali dentro. Os atendentes e a dona da loja são simpaticíssimos e adoram receber fãs do mundo todo que vão até lá! Um rapaz muito atencioso me mostrou cada lugar da loja referente ao filme, deixou que eu tirasse uma foto com a capa do disco da Kath Bloom que os protagonistas ouviram, capa esta que fica numa moldura, pendurada na parede. Ali comprei alguns discos para a minha coleção, uma camiseta da loja e saí flutuando de tão feliz. Caso você vá a Viena algum dia, recomendo muito conhecer esta loja. Ela se chama (respire fundo) Teuchtler Schallplattenhandlung e fica na rua Windmühlgasse, número 10.

Em seguida, fui até o Café Sperl, onde Jesse e Celine, já tarde da noite, vão e fazem seus telefonemas imaginários, uma das cenas mais bacanas do filme. O lugar é muito bonito e parece ser um dos mais tradicionais de Viena. Ao contrário da loja de discos, o atendimento lá não é dos melhores. Além do mais eu fui na hora do almoço, um horário ruim por ser muito lotado. Eu sabia exatamente qual a mesa em que o casal havia se sentado para filmar a cena. Mas não pude sentar lá ou fotografá-la, pois tinham algumas pessoas almoçando. Mas é um lugar ótimo e muito aconchegante, que serve um delicioso apfelstrudel.

Andando mais um pouco, passei pela Maria Theresien Platz, uma praça com um jardim lindíssimo que fica entre os prédios do Museu de História Natural e o Museu de Belas Artes. É um lugar agradabilíssimo para passear devagar curtindo cada detalhe. Esta praça aparece no início da jornada do casal pela cidade, logo depois que eles saem da loja de discos. Outra praça emblemática é Albertinaplatz, onde os dois conversam sobre tudo o que estavam vivendo na sacada da praça e depois, Jesse recita o poema sobre o tempo de W. H. Auden nos degraus de uma estátua na frente do Albertina Palais Museum.

Assim passei um dia todo andando por Viena. A cada rua que passava, procurava alguma janela ou jardim familiar. Foi um dia mágico. Cada vez mais apaixonado por cinema, a sensação de estar no lugar onde foi filmada uma cena que você tem viva na sua cabeça é indescritível! Olhar aquele lugar e entender porque o diretor escolheu determinado ângulo, estar com pessoas que entendem sua paixão e compartilham dela, como aconteceu na loja de discos, é maravilhoso! Para completar a minha aventura na capital austríaca, no dia seguinte, meu último dia na cidade, eu já estava satisfeito e estava mais acompanhando meus pais nos lugares que eles queriam conhecer. Já com o dia escurecendo, passei por uma praça pequena e senti o que eu procurava a cada esquina. A sensação de conhecer aquele lugar sem ter que ficar procurando o endereço no mapa. Bati o olho e reconheci a fonte de água e, na frente dela, algumas mesinhas. Era a Franziskanerplatz, onde se encontra o Kleines Café, onde foi filmada a cena em que uma cigana lê a mão da Celine! Ali, me senti completo. Me senti conectado com meus personagens favoritos! Foi uma das mais puras felicidades que já pude experimentar.

É claro que a viagem toda foi incrível. Conheci lugares magníficos, culturas super diferentes, provei ótimas comidas e me encantei com tanta diversidade. Mas nada se compara aos sentimento de ter andado por Viena por aqueles dois dias, observando tudo, amando cada momento.

Esta minha coluna destina-se a falar sobre cinema, mais especificamente, proponho-me toda semana a recomendar um filme que conste no catálogo da Netflix e que possa te divertir, te fazer pensar, te emocionar, te surpreender e, principalmente, te inspirar.

E, apesar de não constar no catálogo da Netflix, eu recomendo muito que você procure assistir este filme belíssimo, bem como suas duas sequências. São filmes realmente inspiradores, simples, diretos, humanos, cativantes e belíssimas obras de arte.

Para concluir: Hoje eu vim aqui contar uma história que eu vivi, que tem a ver com cinema sim, mas trata-se de um filme exclusivamente, filme este que que não consta no catálogo da Netflix. Mas, honestamente, não tem problema. Hoje estou aqui para falar sobre um momento que fez 2016 valer a pena para mim. Eu sei que foi um ano complicado e cheio de coisas negativas para todo mundo. Mas hoje, na virada do ano, pense em uma coisa muito boa que te aconteceu em 2016. Se apegue a ela. Saboreie este momento de novo e guarde-o consigo.

Eu torço para que 2017 seja um ano muito melhor para todos nós. Assim como eu fiz com este texto, no ano que vem, permita-se sair do óbvio e do comum. Saia do tema, fale sobre emoções e guarde apenas as coisas boas.

Estou torcendo por você e por um Ano Novo de muita surpresa boa, alegria e sucesso para todos nós.

Feliz 2017.

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GETÚLIO

Texto publicado em maio de 2014 nas minhas redes sociais e posteriormente na revista Vanilla.

Fui ao cinema nesta tarde de domingo assistir ao filme Getúlio, protagonizado com muito esmero por Tony Ramos. Vou falar primeiro sobre o filme em si e depois explico porque me senti compelido a vir escrever sobre ele.


Getúlio é um longa metragem muito bem dirigido por João Jardim. Retrata os últimos dias de vida do então presidente Getúlio Vargas em agosto de 1954. Após um atentado ao jornalista e candidato a deputado Carlos Lacerda, uma série de acusações recaem sobre o governo, principalmente à defesa pessoal de Vargas. São descobertos também vários documentos comprovando corrupção e vários outros atos ilícitos dentro do palácio do Catete. Parte dos militares começam a exigir a renúncia de Vargas e alguns ministros começam a falar de conspiração.

Tony Ramos encarna um Getúlio solitário e melancólico. Apesar de cansado e sentindo-se traído, insiste em lutar pela honra de seu nome, negando-se a renunciar, sabendo que não tem culpa de tudo que acontece à sua volta. Também fica claro que Tony Ramos não se prendeu a maneirismos, não forçou um sotaque gauchesco. Sendo assim, sua atuação teve mais fluidez, tornando o personagem mais natural.
O roteiro é bem escrito, apoiado em depoimentos e fatos, mas cuidadosamente dramático, denso, porém sem muita profundidade.
A fotografia chama a atenção. Muito bem feita, com muitos contrastes e ângulos fechados.

A direção de Jardim dá movimento ao filme. Ainda que seja uma trama densa e cheia de complicações, o filme é bem conduzido, sem ficar cansativo. Em resumo, é um filme muito bom. Mais um ponto para o cinema nacional que vem, cada vez mais, apresentando filmes maduros, bem feitos e bem desenvolvidos, sem precisar recorrer aos clichês favela, miséria e nordeste.

Me senti compelido a vir escrever aqui justamente pelo filme ser tão bom.
O cinema consegue criar mitos com muita facilidade. O perigo é que alguns desses mitos não são exatamente como mostrados na tela da sala de cinema. Neste caso, Getúlio Vargas aparece neste filme como um homem honrado e democrático, que se recusa a permitir um golpe autoritário por meio dos militares. Esta visão faz dele um verdadeiro mártir da política nacional, um homem que lutava pela liberdade do povo e pela honra do nome de sua família, chegando a se suicidar, dando sua vida ao invés da renúncia.

Só gostaria de lembrar aqui que este mesmo Getúlio Vargas nas décadas de trinta e quarenta instaurou uma ditadura violenta, fechando o congresso, censurando a imprensa e matando qualquer um que fosse contra seu governo. Vargas, nos anos quarenta, não só instaurou um regime fascista no Brasil, como flertava com o nazismo alemão e o fascismo italiano. Hitler recebeu mais de um telegrama de Getúlio e a polícia brasileira tinha conexões com a Gestapo, como ficou claro no caso de Olga Benario Prestes, que foi deportada para a Alemanha nazista mesmo sendo judia e estando grávida. A ditadura varguista que ficou conhecida como Estado Novo, foi a mais truculenta que o Brasil já viu, sendo mais severa e desumana do que a ditadura instaurada pelo golpe militar de 1964.


Em suas próprias palavras, Getúlio já havia rasgado duas vezes a constituição brasileira a seu favor antes de voltar ao governo nos anos cinquenta. Claro que Getúlio Vargas teve um lado muito bom para o Brasil, em especial ao regulamentar e dar direitos aos trabalhadores. Vargas foi o mais populista de todos os políticos que já passaram pelo governo brasileiro até hoje. Para o bem e para o mal. Portanto, acredito que este filme vem bem a calhar neste ano de eleições para nós brasileiros. Justamente para que possamos questionar quem são nossos candidatos e saber olhar para o passado destes. Indo além, olhando para o passado do Brasil, podemos ir às urnas tendo feito uma análise cuidadosa da nossa política e com a consciência tranquila.
Afinal, o passado a gente não muda. Mas o futuro…

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VOCÊ ESTÁ RINDO DO QUÊ?

Texto publicado em julho de 2022 em minhas redes sociais.

Quando eu era criança, eu queria ser o Rambo, ou o Lion, dos Thundercats. Cresci um pouco, e na pré-adolescência, eu queria ser o Ferris Bueler. Já adolescente, um pouco mais velho, eu queria ser qualquer pessoa que não fosse eu mesmo. Acho que todo mundo passa por isso nessa idade… enfim. Um pouco mais velho, eu queria ser o Sal Paradise, ou o Jim Morrison, ou o Eddie Vedder… Aí entrei na faculdade, a vida adulta foi acontecendo, e essa coisa de querer ser alguém meio que muda de contexto, né… você vai misturando características. Quero escrever como Hunter Thompson, quero tocar (e quem sabe um dia quebrar) guitarra como Pete Townshend, quero ser descolado e boa gente como o Dave Grohl e por aí vai. Atualmente, com praticamente 40 anos de idade, não faz mais sentido esse negócio de querer ser outra pessoa que não eu mesmo. Estou conformado em ser quem eu sou e feliz, na medida do possível, com a vida que eu tenho. Mas calma, esse texto não é exatamente sobre mim. Mas sim sobre essas referências de vida que vamos cultivando ao longo do tempo. E vou deixar de fora as referências pessoais, tipo familiares, amigos… e focar em personalidades famosas.

O fato de hoje em dia eu não ter a menor pretensão de ser outra pessoa, além de mim mesmo, não impede que eu tenha algumas pessoas que me inspiram, com quem eu tenha uma identificação e tal. O que me chamou a atenção e me motivou a vir escrever sobre isso foi que percebi que até alguns anos atrás eu tinha essa relação com personagens de ficção, heróis, ou estrelas do rock e escritores doidões. Mas hoje em dia duas das pessoas mais influentes da minha vida são… comediantes! À medida que envelheço percebo cada vez mais imperfeições e defeitos nas pessoas, e penso sobre a vida delas e sobre a minha. Peguemos Hunter Thompson. Um gênio. Um dos meus escritores favoritos. Parece muito convidativo o estilo de vida que ele levou. Viver intensamente, drogas, loucura…e ainda assim conseguir escrever com brilhantismo. Não consigo me ver nessa posição. Ou eu fico louco, vivendo na farra, ou me concentro para conseguir escrever um texto bom. Veja que nem estou me comparando ao texto dele, simplesmente estou assumindo que escrevo razoavelmente bem. E que levando uma vida de farra e drogas (que é divertidíssima, ninguém duvida) eu jamais conseguiria escrever sequer um texto razoavelmente bom. Isso eu entendo hoje. Alguns anos atrás eu pensava diferente.

Tem muita gente que acha que devemos separar a obra e a pessoa. Eu também acho, mas até certo ponto. Normalmente esse argumento é usado para falar de posicionamento político. Quem nunca viu um velho conservador falando que o Chico Buarque é um ótimo compositor, mas uma pessoa desprezível por ser “comunista”? Neste aspecto, quem é de esquerda leva vantagem, claro. Afinal, fica difícil encontrar um artista realmente inventivo, inovador e talentoso que seja conservador e de direita. Antigamente até tinha gente como o Nelson Rodrigues e tal. Mas hoje em dia… Mas também não é sobre isso que eu quero falar. Calma que eu vou chegar lá. O fato é que eu gosto de ter o pacote completo. O fato de eu ser um voraz consumidor de biografias me ajuda muito nisso. E faz também com que meu senso crítico absorva o artista como pessoa física e sua obra, e tire minhas conclusões com base nesses dois pontos de vista juntos.

Chegamos onde eu queria. Na comédia. Como eu citei, hoje em dia duas pessoas que me inspiram, me influenciam e admiro são comediantes. Ambos são estadunidenses e estão mortos. Mas isso não vem ao caso. A comédia, de maneira geral, sempre me fascinou, e sempre foi um gênero que eu consumi avidamente. Tanto no cinema, como na TV, na literatura, nos quadrinhos e na comédia stand up. A comédia é uma expressão artística intrigante porque ao mesmo tempo que faz rir, que relaxa, que se faz valer do nonsense, da ingenuidade, da casualidade e, muitas vezes, da desgraça alheia, ela também consegue ser imensamente critica, perturbadora e política. Comecei a aprender isso com mais clareza quando assisti pela primeira vez, talvez há uns vinte anos, o filme O Mundo de Andy, lançado em 1999, dirigido pelo Milos Forman, estrelado pelo Jim Carrey e que retrata a vida e obra do Andy Kaufman.

Kaufman é um dos dois comediantes que hoje são uma referência e inspiração para mim. Não tanto pela sua obra, admito. Mas principalmente pelo seu modo de enxergar a arte, como interpretá-la, a importância de deixá-la livre para mostrar novos caminhos para o próprio artista e para os espectadores. E também, ser fiel a sua essência artística. Andy Kaufman criou tantas personas diferentes para si mesmo, que extrapolavam os palcos e sets de filmagem, que se criou toda uma mística em torno dele. Algo beirando o sobrenatural. Isso ficou evidente no documentário de 2017 Jim & Andy: The Great Beyond. Featuring a Very Special, Contractually Obligated Mention of Tony Clifton. Neste filme, Jim Carrey fala sobre como foi incorporar Andy Kaufman, enquanto várias cenas dos bastidores do filme O Mundo de Andy são mostradas. Para quem já viu o filme e conhece um pouco da história de Andy Kaufman, este doc é um prato cheio!

O outro comediante sobre o qual quero falar, eu tive um contato mais profundo muito recentemente, através também de um documentário. Eu já conhecia um pouco do trabalho dele através de vídeos no Youtube, com trechos de seus shows de stand up. Mas foi através do filme George Carlin’s American Dream, dirigido pelo Judd Apatow e lançao pela HBO Max coisa de um mês atrás. George Carlin me impactou muito. Sua vida e sua obra se confundem, gerando algo difícil de explicar. Um ser humano com uma vida tão errática e conturbada, que não só viu na comédia uma maneira de ganhar seu sustento, como se fez valer dela para se reinventar como pessoa e, de quebra, revolucionar a comédia, mais de uma vez ao longo de carreira. Mas o que mais me encantou na trajetória de George Carlin, foi justamente quando ele estava mais velho, se sentindo estagnado e se deu conta que a solução para ser diferente era ser ele mesmo e expor sem medo suas opiniões sobre problemas sérios e espinhosos para a sociedade em geral. Religião, política, aborto, meio ambiente, eram alguns de seus temas favoritos. E o impressionante é que esses textos de comédia stand up que ele escrevia para seus shows são magníficos! Não só pelo conteúdo, que é sim contestador, ácido, contundente e, claro, engraçado. São textos muito bem elaborados, com um ritmo envolvente, clareza nas ideias, frases bem construídas e uma fluidez invejável. Funcionavam super bem no palco, sendo interpretado por Carlin com sua voz rouca e expressões faciais engraçadas, mas funcionam também como texto a ser lido. George Carlin passou por muita coisa, de um pai abusivo que abandonou a família até o vício a cocaína, passando pela morte prematura de sua primeira esposa. Mas ele nunca deixou de escrever seu próprio material e nunca perdeu as oportunidades de se reinventar profissionalmente e se redescobrir como pessoa mais de uma vez. Realmente um gênio, de quem me tornei grande admirador.

Pra concluir, achei engraçado constatar que depois de passar por tantos heróis, estrelas do rock e escritores junkies, depois de velho e finalmente entendendo quem eu sou e o que eu quero fazer, eu encontre na comédia as referências, inspirações e motivação para seguir em frente. Depois de tanto tempo querendo ser tanta gente, percebo que estou ficando velho, e que não adiantaria nada ter sido outra pessoa no passado. No fim das contas, eu acabaria aqui nesta cadeira, digitando neste computador um texto qualquer. E provavelmente estaria rindo disso, como estou agora, ao me dar conta que a vida é mesmo uma baita piada de mau gosto, e só nos resta escolher se vamos rir dela ou não.

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QUEM SÃO ELES?

Texto publicado em março de 2022 em minhas redes sociais.

Poucas coisas no mundo são tão instigantes quanto as teorias da conspiração! Não dá pra negar. Se você está numa roda de amigos e pinta um assunto polêmico, e alguiém manda uma frase do tipo “Isso é o que eles querem que você pense!”, o clima já muda e todo mundo quer saber por que a pessoa disse isso. Quem são eles afinal? O governo, a mídia, os bilionários, os maçons, os illuminati… ! O homem chegou mesmo na lua? A máfia matou o Kennedy? A Copa do Mundo de 1998 foi comprada? O FBI matou John Lennon? A facada de Bolsonaro às vésperas da eleição foi armada pelos bolsonaristas? A Terra é mesmo redonda?

Ah, são tantas perguntas deliciosas de serem debatidas! Mas, falando sério, a resposta para a maioria dessas perguntas é bem óbvia e a menos interessante possível. Mas, de qualquer modo, nos faz pensar. Eu estava vendo as notícias sobre o conflito entre Rússia e Ucrânia, e os desdobramentos disso no ocidente. Sem entrar no mérito de quem está certo ou errado, até porque tá todo mundo errado numa guerra, mas uns mais errados que outros. Enfim, sem entrar nesse mérito, chama a atenção a maneira como o presidente dos Estados Unidos está lidando com a situação. Claro, os Estados Unidos sempre foram enxeridos e se meteram em vários conflitos (sempre com intenções sórdidas) e sempre fizeram merda. Foi assim no Vietnã, Afeganistão, no Iraque… O caso é que parece que todo presidente dos Estados Unidos sente uma necessidade incontrolável de ter uma guerra pra chamar de sua. Biden está num frenesi que só fala nisso. Tá cheio de dedos pra mandar uma turma lá, com certeza.

Pensar nisso me fez lembrar de um filme inacreditável, que eu assisti pela primeira vez quando estava na faculdade de jornalismo. Gostei tanto do filme que depois revi uma porção de outras vezes ao longo dos anos, no tempo que ainda tinha video locadoras. Eu alugava esse filme direto. Estou falando de Mera Coincidência, uma tradução tosca, mas bem intencionada, do título original Wag the Dog. O filme é de 1997, dirigido pelo Barry Levinson e com um elenco arrasador, com Robert DeNiro, Dustin Hoffman, Woody Harrelson, Anne Hech, Kirsten Dunst, Willian H. Macy e Willie Nelson.

Antes de falar do que se trata o filme, vale falar do título. O título em inglês é uma expressão que, numa tradução livre, significa “o rabo abanando o cachorro”. Quando você assiste o filme, este título faz todo o sentido do mundo. O título em português também faz, funciona bem. Mas perde um pouco a graça. Mas é o seguinte. No filme, o presidente dos Estados Unidos é acusado de assédio sexual semanas antes das prévias das eleições, nas quais ele é candidato a reeleição. A assessoria da Casa Branca então contrata alguns profissionais, que vão forjar uma guerra, em que os Estados Unidos vão intervir. Isso não só vai desviar a atenção do público da acusação de asédio, como vai unir a nação e fazer com que haja empatia pelo governo bondoso, que busca pacificar países injustiçados mundo afora. Sem exagero. É um filme incrível, empolgante, divertido e, por mais que seja Hollywood, tenha um monte de exageros, o tempo todo fica aquela pulga atrás da orelha que te faz pensar: “Cara, isso pode mesmo acontecer e a gente não se liga.” Claro que o ataque covarde e injustificável da Rússia contra a Ucrânia não é nada inventado. Está acontecendo mesmo e é muito triste. Mas sempre que vejo o Biden discursando sobre o conflito, acabo lembrando deste filme.

Pra fechar este texto com o clima de teoria da conspiração lá em cima, te digo o seguinte. Este filme é inacreditável de bom e eu recomendo muito que você assista. Porém, onde assistir? Pois é. Nas principais plataformas de streaming ele não se encontra. Netflix, Amazon Prime, Disney Plus, Globoplay, HBO Max… simplesmente não tem onde ver. Nem mesmo o Youtube, que tem o esquema de você alugar uns filmes completos e tal, também não tem. Quem diria que um filme que talvez seja tão revelador não esteja disponível em lugar nenhum, para que ninguém o veja. E olha que se trata de um filme notável, afinal, além do elenco de peso citado, o diretor Barry Levinson não é qualquer um. Ele é responsável por grandes obras como Bom Dia, Vietnã, Rain Man e Bugsy! Então é isso. Hoje eu te recomendo assistir um filme que, aparentemente, “eles” não recomendam.

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WHILE HIS GUITAR GENTLY WEEPS

Texto publicado no Diário do Sudoeste em setembro de 2017.

Logo que fui seduzido pela música e pelo rock n’ roll, ainda pré adolescente, me apaixonei pela obra dos Beatles. E meu interesse só cresceu, e continua crescendo, desde então. Sempre gostei de provocar as pessoas que me perguntam qual é a minha banda favorita. Invariavelmente respondo que é o Pearl Jam. Aí, a pessoa diz, nossa, achei que era os Beatles, você tem tanta coisa e fala tanto sobre eles… É quando eu respondo triunfante: É que Beatles para mim é mais que uma banda: é religião. Portanto, hoje pisaremos em solo sagrado e vocês terão um texto muito pessoal onde falaremos de Beatles, religiosidade e um dos mais inventivos guitarristas da história.

George Harrison: Vivendo no Mundo Materialista (título original: George Harrison: Living in the Material World) foi lançado em 2011, escrito e dirigido por Martin Scorsese. Trata-se de um documentário que se presta a revelar a personalidade do “beatle quieto” através de imagens raras do acervo pessoal do guitarrista e também de entrevistas de personalidades como Paul McCartney, Eric Clapton, Ringo Starr, Phil Spector e muitos outros.

Faz parte do DNA de todos os filmes de Martin Scorsese uma trilha sonora marcante, sempre com grandes canções do rock n’ roll e do blues. Scorsese tem muita intimidade com a música e em documentários, já tendo feito os ótimos Shine a Light (2008), sobre a obra dos Rolling Stones e No Direction Home (2005) sobre a trajetória de Bob Dylan. Neste documentário sobre George Harrison, Scorsese, consciente da complexidade do seu biografado, divide o filme em duas partes e conduz muito bem toda a trajetória de Harrison, sempre ressaltando sua personalidade forte e sua busca pela espiritualidade. O longa é muito bem conduzido, seguindo a cronologia e nos entregando muitas imagens deslumbrantes ao longo do caminho. Tecnicamente, é um filme impecável.

O filme tem três horas e meia de duração. Mas é o caso de não parecer. Não se percebe o tempo passar. A história de George é tão interessante e cheia de camadas, os depoimentos de seus amigos e familiares são tão estimulantes e emocionais, e são tantas canções maravilhosas que permeiam todo o longa, que essas três horas e meia parecem voar. Mesmo para quem já é bem iniciado na história dos Beatles e de seus integrantes separadamente, este filme acrescenta muito. Nos apresenta um homem de um talento descomunal que conseguiu viver entre dois mundos distintos, quase que fazendo com que um completasse o outro. Um homem que compreendia as pessoas de uma maneira muito mais direta e que podia ser, ao mesmo tempo, muito terno e amável e rispidamente sincero. Claro e escuro. Introspectivo e bem humorado. Yin e yang. Tudo sempre se conectando através da música.

George Harrison: Vivendo no Mundo Material é um mistério místico que vale muito a pena ser desvendado. Uma avalanche de música e sabedoria. Sim, sabedoria. É uma obra primorosa de um dos maiores cineastas do mundo, falando sobre um dos artistas mais complexos e talentosos de todos os tempos. Exagero?
Pague para ver! Filme recomendadíssimo!

ps: Meu beatle favorito é o Paul.

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A VIOLÊNCIA TRAVESTIDA FAZ EU TROTTOIR.

Texto publicado no Diário do Sudoeste em outubro de 2019.

A arte imita a vida é mais que um clichê, é um conceito. Conceito este que acredito ser mais abrangente. A arte não só imita a vida, ela a parodia, faz uma caricatura muitas vezes mais fiel do que esperamos. A caricatura nada mais é do que uma forma de retratar alguém ou alguma coisa exagerando suas características mais evidentes. Então, se o sujeito é narigudo, a caricatura dele vai ter um nariz imensamente desproporcional. Se a sociedade é injusta e implacável, sua caricatura vai ser perturbadora e surrealmente violenta.

Longe de mim achar que a vida é uma merda, que não vale a pena o esforço de ser amável e honesto com quem está ao meu redor. Mas também não dá pra negar que tem muita coisa muito errada. Pessoas são consumidas em detrimento do dinheiro (eu ia falar vil metal, mas achei que ia forçar a barra). Mas sério. Cada vez mais, todo mundo é um alvo e ninguém está salvo. Estou falando de dois lados muito díspares que juntos criam um caos difícil de ser controlado. De um lado a intolerância raivosa de quem está cansado de se foder e quer algum tipo de vingança, já que não vai conseguir ter a vida confortável que sonhava. De outro lado, pessoas que sofrem dos mais variados distúrbios mentais e de comportamento por conta de inúmeros fatores. Depressão, stress, burnout, bipolaridade… doenças que são ignoradas, tratadas como frescura e que podem desencadear um verdadeiro inferno.

A arte vem nos alertar disso tudo das mais variadas maneiras. Pode ser numa canção que diz que a violência nem sempre é o murro na cara literal. É o abandono, a ganância, é a vontade de gritar sem ter nada pra dizer. É a violência fantasiada de cidadão de bem que passeia pelas calçadas despreocupadamente. Pode ser um filme onde a desesperança é tamanha que todo mundo passa pela violência nua e nem repara. Aí, quando alguém com notoriedade fala sobre o assunto, alguns reagem com um falso pesar enquanto fecham o a janela de vidro blindado e outros reagem com revolta contra tal hipocrisia. É quando a intolerância e o distúrbio se juntam formando nitroglicerina.

Coringa não é um filme genial. Mas é impressionante dada sua força artística, a arte caricaturando a vida de maneira brilhante. O fato de retratar a origem de um personagem icônico da cultura pop, um dos vilões mais famosos da ficção, é só a cereja no bolo. Arthur Fleck podia ser um qualquer em New York ou em São Paulo, mas calhou de ele estar em Gotham City e resolver se chamar Coringa. É um filme com um roteiro muito bom, uma fotografia de arrepiar, direção impressionante e atuação assustadora e impecável de Joaquim Phoenix, que vai ser indicado ao Oscar por este papel, e provavelmente vai ganhar (pode anotar aí, ano que vem a gente conversa).

Muito tem se falado sobre Coringa ser um filme que incita a violência, o caos, como arma contra uma sociedade corrompida e inerte. A verdade é que dá pra analisar melhor a obra e perceber que estamos diante de um filme que mostra que quando mais violenta uma sociedade, mais doente ela fica, mas anestesiada e raivosa ao mesmo tempo. Tal qual a canção de Humberto Gessinger, ou o Guernica do Picasso, ou o Clube da Luta ou este Coringa, a arte não traz resposta nenhuma, mas te joga na cara de forma exagerada o que há de mais assustador para que você pense a respeito. Ao invés ignora-la e deixar que a violência travestida dê seu passeio por aí, vamos questiona-la e faze-la parar de alguma maneira.

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