Escrito para o site. Janeiro de 2023
Desde a chegada de Cabral até a corrida do ouro em Minas Gerais, ou seja, por praticamente 150 anos, os indígenas tiveram um protagonismo indispensável na história do Brasil. Claro, na maioria das vezes com finais trágicos. Mas o que seria do início da colonização baiana sem o encontro de Caramuru e Paraguaçu? O que seria de São Paulo sem a aliança entre o lendário João Ramalho e o morubixaba tupiniquim Tibiriçá? O que seria dos portugueses no Rio de Janeiro sem os mesmos tupiniquins na batalha contra os franceses, no que ficou conhecido como o projeto França Antártica? O que seria do sul do Brasil sem as inigualáveis missões jesuíticas? E esses são só alguns episódios marcantes. Tem muito mais. Mas um desses episódios em especial, merece ser contado em detalhes, por dois motivos: primeiro porque não termina em tragédia para os índios que protagonizaram tal acontecimento. Segundo porque o ritual que envolve essa história acabou sendo celebrada 4 séculos depois, num dos momentos mais importantes da cultura brasileira.
Contam os livros que, por volta de 1550, o padre Manuel da Nóbrega desenvolvia seu árduo trabalho de catequisar os índios, traduzindo os evangelhos para o tupi e criando comunidades que ficariam conhecidas como missões jesuíticas. Acontece que esse trabalho era como dar murro em ponta de faca, pois os governadores das capitanias queriam simplesmente escravizar os índios, e não havia lei nenhuma que protegesse o trabalho dos jesuítas e muito menos os índios.. O padre Manuel da Nóbrega era um dos mais importantes nomes da Companhia de Jesus, uma espécie de tropa de elite do catolicismo. Ele era um homem influente na Europa, homem de confiança do criador da Companhia, Inácio de Loyola. Foi então que o padre Nóbrega, depois de muito insistir através de cartas e mais cartas ao rei português, ao Inácio de Loyola e até mesmo ao Papa, conseguiu que um bispo fosse enviado para o Brasil, a fim de agilizar as tomadas de decisões e trazer mais ordem à colônia, sem depender do longo tempo do trânsito de cartas entre Brasil e Portugal.
Chega em Salvador então, em 1552, o bispo Dom Pero Fernandes Sardinha, o Bispo Sardinha! Português letrado, porém ganancioso, ficou conhecido por oferecer aos que lhe vinham se confessar, penas pecuniárias. Ou seja, ao invés de rezar o terço, 20 Ave Maria, 30 Pai Nosso, bastava pagar uma módica quantia em moedas de ouro, que os pecados seriam perdoados. Que homem formidável, não? Uma vez no Brasil, Sardinha se aliou de pronto a Antônio Cardoso de Barros, o primeiro Ministro da Fazenda do Brasil, cargo que se chamava na época Provedor-Mor, e um homem famoso por ser igualmente ganancioso e facilmente corruptível. Sem contar que o bispo se recusou a morar na simples casa paroquial de uma igreja e se instalou numa luxuosa mansão. Ali começariam os mandos e desmandos do bispo, sempre com vistas a arrecadar cada vz mais dinheiro.
Mas a paz do bispo durou apenas 4 anos. No início de 1556 o bispo Sardinha passou a fazer críticas ferrenhas ao governador da capitania da Bahia e a seu filho, Álvaro Duarte da Costa, que tinha um comportamento libertino, por assim dizer. Sabe como é. Ele era um playboy, jovem, rico e destemido, saía pelas tabernas de Salvador fazendo festas repletas de luxúria e excessos. Enquanto isso, em abril daquele mesmo ano, percebendo que a cidade estava desguarnecida, os índios Tupinambás fazem um ataque surpresa, tentando tomar Salvador e expulsar os portugueses. Os índios estavam de saco cheio da insistente catequização de Padre Nóbrega e sua turma, bem como não aguentava mais ver membros da tribo morrendo de varíola e outras doenças. E aí, invadiram a cidade sem dó nem piedade. Porém, eles foram derrotados por um contra ataque português chefiado por ninguém menos que Álvaro Duarte da Costa, que, além de playboy festeiro, também manjava de táticas de guerrilha e era um exímio lutador. Acabou aclamado como herói da cidade. Com moral na praça, o filho do governador fez denúncias de corrupção, verdadeiras, diga-se, e convenceu as autoridades da capitania a expulsar o Bispo Sardinha e seu fiel amigo, o provedor-mor Cardoso de Barros.
No dia 2 de junho de 1556, o bispo e uma comitiva de mais 96 pessoas embarcaram numa velha nau de nome Nossa Senhora da Ajuda, com destino a Lisboa. Só que cinco dias depois, após atravessar a foz do rio Cururipe, um trecho de difícil navegação, cheio de corais, no nordeste brasileiro, a nau encalhou numa barreira de corais, danificando fatalmente a embarcação, durante uma noite de raivosa tempestade. No dia seguinte, a comitiva de 97 portugueses sobreviveu à tempestade, mas teve que abandonar a nau. Chegaram à praia, onde encontraram aproximadamente 200 índios da tribo Caeté, conhecidos por odiar portugueses. Porém, O bispo Sardinha e sua turma não sabiam disso. Os Caetés se mostraram solícitos e se oferecem para conduzir a comitiva até a cidade de Olinda em segurança. Ingenuamente, os portugueses agradeceram e aceitaram a oferta. Forma-se então uma fila indiana, alguns poucos índios à frente mostrando o caminho, os portugueses e o restante dos índios no fim da coluna. Eis que no meio do caminho, os índios encurralam os portugueses. Era necessário atravessar um trecho de rio raso, porém consideravelmente largo, onde ficava com água na altura do peito. Os índios da frente se adiantaram e nadaram até uma margem, e os índios do fim da fila ficaram na outra. Quando os portugueses estavam no meio do rio, uma nuvem de flechas sobrevoa e cai sobre eles. A maioria morre ali mesmo. Os poucos que sobreviveram são levados como prisioneiros para a aldeia. Entre eles está o bispo Sardinha. Dias depois, fizeram um dos famosos banquetes antropofágicos e devoraram com toda a cerimônia, pompa e circunstância o primeiro bispo do Brasil. O bispo Sardinha.
Uma das ironias dessa história é que o reino de Portugal mandaria em seguida mais um bispo para o Brasil. O nome dele? Bispo Pero Leitão! Mas este não acabou sendo devorado por índios, apesar de seu nome tão sugestivo quanto o de seu antecessor. Outro aspecto muito relevante dessa história é o ritual em si, do ato de canibalismo. Ele ficou conhecido como ritual antropofágico porque realmente tinha esse viés eucarístico, repleto de misticismo. O ritual antropofágico é conhecido com riqueza de detalhes através de relatos de alguns jesuítas, mas principalmente pelas memórias do alemão Hans Staden. O livro que ele escreveu sobre suas desventuras no Brasil teria uma importância imensa para inspirar todo um movimento artístico por aqui 4 séculos depois, o modernismo.
Hans Staden foi um aventureiro alemão que esteve no Brasil como explorador por duas vezes, uma em 1548 e outra em 1550. E foi nessa segunda visita que tudo aconteceu. Tudo mesmo! Ao se aproximar da costa brasileira, próximo ao atual estado do Maranhão, o navio onde ele viajava foi atacado por piratas. Conseguiram se livrar dos bandidos e seguiram viagem, rumo a Laguna, em Santa Catarina, seu destino era o Rio da Prata. Porém, já na costa catarinense, a embarcação naufragou durante uma tempestade. Hans Staden e alguns outros tripulantes sobreviveram, nadaram até a praia e seguiram a pé até São Vicente, litoral paulista, uma verdadeira epopeia cheia de aventuras. Claro, isso tudo aconteceu ao longo de meses. O aventureiro alemão havia saído de Sevilha na Páscoa de 1550, naufragou na ilha de Santa Catarina meses depois e por lá permaneceu por dois anos, até que resolveu rumar para São Vicente, em busca de uma carona para voltar para a Europa.
Em 1552 ele acabou se estabelecendo em São Vicente, arranjou um trabalho como arcabuzeiro no forte de Bertioga. Em 1554 Staden ainda mantinha o mesmo trabalho. Era fim de janeiro, poucos dias antes da fundação da cidade de São Paulo, do outro lado da Serra do Mar, pelo mesmo padre Manoel da Nóbrega que trouxera o bispo Sardinha para o Brasil. Hans Staden caminhava pela praia quando foi surpreendido por um grupo de índios Tamoio, e imediatamente capturado. Os Tamoios eram muito chegados a uma treta, gostavam de violência e, acima de tudo, desprezavam homens brancos. Ah, sim, é claro, também praticavam a antropofagia. Mas afinal, que diabos é antropofagia?
A antropofagia era um ritual místico indígena comum a várias tribos, Tamoio, Tupinambá, Tupiniquim… e todas essas tribos eram inimigas umas das outras. Quando um guerreiro Tupiniquim era capturado pelos Tamoio, para aquele guerreiro, ser morto e devorado no ritual antropofágico era uma honra. Tanto que o ritual levava dias para ser preparado. Enquanto isso o guerreiro capturado vivia entre a tribo numa boa, pois seria uma vergonha fugir, ele sequer poderia voltar para a sua própria tribo. Nesses dias de preparação, as mulheres produziam o cauim, uma bebida fermentada de mandioca altamente alcoólica e alucinógena. No dia do ritual, era encenada uma fuga do prisioneiro. Ele saía correndo para a floresta, mas logo se deixava ser capturado. Era recebido na aldeia entre gritos e ofensas. O morubixaba, autoridade máxima da tribo, que já estava calibrado no cauim desde cedo, vem em transe e, num golpe de tacape, arrebenta a cabeça do prisioneiro, que cai morto. Às pressas, as mulheres vem com cuias e recolhem o sangue e os miolos, que são distribuídos pela tribo toda, inclusive crianças. Em seguida, o corpo é cortado e colocado sobre o fogo. A festa dura dois dias de comilança do corpo do guerreiro e bebelança de muito cauim. Oque torna isso tudo mais do que um simples ato vil de canibalismo é que os índios acreditavam que, ao consumir a carne daquela pessoa, estava incorporando todas as virtudes que ele tinha em vida. Tanto que não eram todos os inimigos capturados que eram devorados, apenas alguns escolhidos. E quando Hans Staden foi capturado, ele acabou sendo escolhido para ser devorado, pois se mostrou valoroso, ao lutar sozinho contra mais de uma dezena de índios antes de ser capturado.
Ele ficou dias na tribo. Nesse período, se engraçou com a filha de um dos caciques e, por isso, foi sendo poupado. Passam-se meses. Ele próprio presenciou mais de uma vez o ritual antropofágico acontecer com inimigos capturados depois dele. Staden conquistou a simpatia dos índios e foi ficando, ficando… e passaram-se 3 anos! Em 1557, finalmente ele vê uma oportunidade de fugir e embarca num navio francês de volta para a Europa. Lá, ele conta, numa narrativa muito detalhada e cativante, tudo o que viveu. O livro foi rapidamente traduzido para várias línguas e virou best seller em toda a Europa. O título da obra é Hans Staden: Suas Viagens e Cativeiro Entre os Selvagens do Brasil. E foi uma cópia desse livro, no original, em alemão, que foi adquirido na Europa, por acaso, pelo barão do Café Eduardo Prado, em 1900.
Eduardo Prado era um dos cafeicultores paulistas mais ricos da época. Ao retornar ao Brasil, encantado com a obra de Staden, ele deu este livro para um botânico suíço chamado Albert Löfgren, que o traduziu para o português. A ideia é que o livro fosse traduzido e editado para ser lançado no Brasil, tudo sob o financiamento do próprio Eduardo Prado. O filho de Eduardo Prado era Paulo Prado, um intrépido e intelectual jovem paulistano que encabeçou, e financiou, a legendária Semana de Arte Moderna de São Paulo em 1922. Paulo Prado era amigo de todos os modernistas e estava sempre com eles, apesar de ele próprio não ter talento algum para a pintura, literatura ou música. Até 1923 os modernistas brasileiros estavam completamente voltados para a vanguarda artística do Velho Mundo. Porém quando o poeta francês Blaise Cendras vem para o Brasil visitar seus amigos Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, tudo muda. Cendras se encantou com a cultura caipira do interior de São Paulo, onde Tarsila do Amaral tinha família, e principalmente com a arquitetura barroca, as paisagens e esculturas das cidades históricas de Minas Gerais. E passou um sermão nos artistas brasileiros dizendo algo como “Que diabos vocês estão fazendo atrás da arte europeia, se aqui vocês tem uma raiz artística belíssima e riquíssima! Tomem vergonha!”. Ele não deve ter sido assim tão drástico, mas que gosto de imaginar que foi assim.
O fato é que, depois disso, principalmente Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Tarsila do Amaral passaram a se voltar para as raízes brasileiras e procurar uma identidade. Em março de 1924 é publicado no jornal Correio da Manhã o Manifesto da Poesia Pau Brasil, que seria mais encorpado e lançado em livro de mesmo título ainda naquele ano. Escrito por Oswald de Andrade, o texto sugere uma busca da identidade brasileira, um aceno ao primitivismo, mas com uma linguagem moderna, uma narrativa com a fluidez e liberdade do expressionismo italiano. Os modernistas acabavam de descobrir o Brasil! E foi logo depois do lançamento deste livro que Paulo Prado, encantado com essa busca de Oswald pelo Brasil profundo, lhe presenteou com uma cópia em português das memórias de Hans Staden. O livro do alemão impressionou muito Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, que eram casados, na época. Impressionou tanto que os inspirou a produzir duas obras fundamentais do modernismo brasileiro: o antológico Manifesto Antropofágico, escrito por Oswald e a pintura brasileira mais icônica e importante do país, o Abaporu, pintado por Tarsila do Amaral. Vale lembrar inclusive que Abaporu em tupi significa Comedor de Gente.
Assim, termino este texto, que nada mais é do que uma verdadeira homenagem aos povos nativos do Brasil e de toda a América. Se no passado nossos índios tiveram protagonismo, infelizmente, hoje estão à margem, mais que esquecidos, estão sendo violados por garimpeiros e grileiros de terra, principalmente o povo Yanomami. É preciso lutar para que esses povos sejam protegidos, e respeitados. Afinal, estaremos protegendo e respeitando assim a nossa própria história.