Texto publicado no Diário do Sudoeste em outubro de 2019.
A arte imita a vida é mais que um clichê, é um conceito. Conceito este que acredito ser mais abrangente. A arte não só imita a vida, ela a parodia, faz uma caricatura muitas vezes mais fiel do que esperamos. A caricatura nada mais é do que uma forma de retratar alguém ou alguma coisa exagerando suas características mais evidentes. Então, se o sujeito é narigudo, a caricatura dele vai ter um nariz imensamente desproporcional. Se a sociedade é injusta e implacável, sua caricatura vai ser perturbadora e surrealmente violenta.
Longe de mim achar que a vida é uma merda, que não vale a pena o esforço de ser amável e honesto com quem está ao meu redor. Mas também não dá pra negar que tem muita coisa muito errada. Pessoas são consumidas em detrimento do dinheiro (eu ia falar vil metal, mas achei que ia forçar a barra). Mas sério. Cada vez mais, todo mundo é um alvo e ninguém está salvo. Estou falando de dois lados muito díspares que juntos criam um caos difícil de ser controlado. De um lado a intolerância raivosa de quem está cansado de se foder e quer algum tipo de vingança, já que não vai conseguir ter a vida confortável que sonhava. De outro lado, pessoas que sofrem dos mais variados distúrbios mentais e de comportamento por conta de inúmeros fatores. Depressão, stress, burnout, bipolaridade… doenças que são ignoradas, tratadas como frescura e que podem desencadear um verdadeiro inferno.
A arte vem nos alertar disso tudo das mais variadas maneiras. Pode ser numa canção que diz que a violência nem sempre é o murro na cara literal. É o abandono, a ganância, é a vontade de gritar sem ter nada pra dizer. É a violência fantasiada de cidadão de bem que passeia pelas calçadas despreocupadamente. Pode ser um filme onde a desesperança é tamanha que todo mundo passa pela violência nua e nem repara. Aí, quando alguém com notoriedade fala sobre o assunto, alguns reagem com um falso pesar enquanto fecham o a janela de vidro blindado e outros reagem com revolta contra tal hipocrisia. É quando a intolerância e o distúrbio se juntam formando nitroglicerina.
Coringa não é um filme genial. Mas é impressionante dada sua força artística, a arte caricaturando a vida de maneira brilhante. O fato de retratar a origem de um personagem icônico da cultura pop, um dos vilões mais famosos da ficção, é só a cereja no bolo. Arthur Fleck podia ser um qualquer em New York ou em São Paulo, mas calhou de ele estar em Gotham City e resolver se chamar Coringa. É um filme com um roteiro muito bom, uma fotografia de arrepiar, direção impressionante e atuação assustadora e impecável de Joaquim Phoenix, que vai ser indicado ao Oscar por este papel, e provavelmente vai ganhar (pode anotar aí, ano que vem a gente conversa).
Muito tem se falado sobre Coringa ser um filme que incita a violência, o caos, como arma contra uma sociedade corrompida e inerte. A verdade é que dá pra analisar melhor a obra e perceber que estamos diante de um filme que mostra que quando mais violenta uma sociedade, mais doente ela fica, mas anestesiada e raivosa ao mesmo tempo. Tal qual a canção de Humberto Gessinger, ou o Guernica do Picasso, ou o Clube da Luta ou este Coringa, a arte não traz resposta nenhuma, mas te joga na cara de forma exagerada o que há de mais assustador para que você pense a respeito. Ao invés ignora-la e deixar que a violência travestida dê seu passeio por aí, vamos questiona-la e faze-la parar de alguma maneira.