Texto publicado em outubro de 2022 em minhas redes sociais.
Em junho de 2004 o Papa João Paulo II foi a público pedir perdão à humanidade pelos excessos cometidos pela igreja católica durante o período em que vigorou a infame Santa Inquisição. No caso, este período abrange sete séculos! A Inquisição foi criada pelo Papa Gregório IX em 1233 e durou até meados de1820, principalmente nas cortes da Espanha e Portugal. Por excessos, entenda-se perseguição, tortura, antissemitismo e mortes brutais como enforcamento e ser queimado vivo numa fogueira. Não existe uma estimativa de quanto a Inquisição matou , mas estudos indicam que só a Inquisição Espanhola, notoriamente a mais atuante e cruel, entre 1478 e 1834 matou mais de 300 mil pessoas. Portanto, não é muito provável que o número de vítimas tenha ultrapassado um milhão em toda a Europa e Américas.
Antes da Inquisição, as Cruzadas já promoveram um morticínio enorme. Mas por quê tantas mortes? A resposta mais rápida é que foi tudo em nome de Deus. Mas a gente sabe que não é bem assim. No século V o império romano já dava seus últimos suspiros, deixando um vazio de poder, principalmente em Roma. A igreja católica se aproveitou disso e tomou as rédeas da governança. Enriqueceu rapidamente e passou a ter influência cada vez maior entre os diversos reinos da Europa ocidental. Se distanciando cada vez mais dos verdadeiros propósitos cristãos, a igreja passou a querer ter mais e mais poder. As cruzadas foram uma desculpa da igreja para obter mais territórios e ter maior influência no mundo. Se você quer tentar entender todos os conflitos do oriente médio, as cruzadas e a conquista da Terra Santa (Jerusalém) é um bom ponto de partida. Da mesma maneira, a Inquisição serviu como tropa de choque de retaliação a quem quer que fosse contrário aos ideias da igreja católica.
A Reforma Protestante, encabeçada por Martinho Lutero, foi um baque para o catolicismo, que reagiu com ferocidade. Foi quando a Inquisição intensificou a perseguição aos que eram considerados hereges. Também foi nessa época que foi criada a Companhia de Jesus, pelo bispo Inácio de Loyola. Os membros dessa ordem, os jesuítas, foram os responsáveis por boa parte da cristianização dos povos originários das Américas. Os jesuítas eram a tropa de elite do catolicismo, homens devotos, que não respondiam a nenhum rei ou governador, mas somente ao Papa. Esse movimento da igreja católica ficou conhecido como Contra Reforma, e foi muito responsável pelo atraso sócio cultural tanto das cortes europeias, em especial da península ibérica, como também das colônias no Novo Mundo. Afinal, uma das premissas propostas por Martinho Lutero era que a bíblia sagrada fosse acessível a todos, que todos pudessem lê-la. Para tanto, estimulava a alfabetização dos povos. Já o catolicismo era radicalmente contra isso. Preferia manter o povo analfabeto, como se dissesse “Você não precisa ler. Deixa que eu leio e te conto o que está escrito.”. Afinal, assim fica bem mais fácil manipular as pessoas.
Isso tudo é muito significativo para explicar o Brasil de hoje. Até a chegada da família real em 1808, fugindo do Napoleão, o Brasil não tinha nenhuma escola ou universidade. As poucas pessoas que aprendiam a ler e escrever, eram ensinadas em casa, em sua maioria pessoas ligadas à igreja. Mesmo depois da chegada de Dom João VI e sua patota no Rio de Janeiro, a educação pouco evoluiu. Até porque a simples venda de livros era proibida, principalmente livros que pudessem inflamar quaisquer ideias iluministas. Afinal, a revolução francesa assustou todos os reis do mundo, sem falar que os Estados Unidos, àquela altura, já era um país livre e vivendo uma república. Quando a corte portuguesa voltou para Lisboa em 1821, praticamente 90% da população do Brasil era analfabeta, sem contar que mais da metade dessa população era de negros escravos. Dom Pedro II, sabidamente um intelectual, incentivou a criação de escolas e universidades, mas de maneira geral, a educação era toda ligada a padres e freiras. Ainda seguíamos atrelados incondicionalmente ao clero.
O golpe militar de 15 de novembro de 1889, que culminou na proclamação da república, ao elaborar a constituição de 1891, pela primeira vez coloca o Brasil como um estado laico. Sim, finalmente estávamos livres da influência da igreja na política. Oficialmente, era o que deveria acontecer. Na prática, a igreja continuou influenciando governo após governo. Isso não é só aqui no Brasil não. Praticamente toda a América Latina é essencialmente católica e bispos e padres são formadores de opinião muito influentes nas sociedades.
A religião é uma das coisas mais paradoxais da humanidade. Da mesma maneira que alimenta a alma das pessoas com paz, espiritualidade e compaixão, também envenena a sociedade com dogmas moralistas e castradores. Mas, enfim, são escolhas, que cada um faz, de acordo com os seus princípios e crenças. Justamente por isso, ela não deveria se misturar com a política. Porque se as duas coisas se misturam, o estado vai querer dizer o que eu, que não tenho crença em determinada religião, devo fazer ou deixar de fazer por princípios dogmáticos e não puramente sociais. Hoje em dia, as coisas se tornam ainda mais turbulentas, pois temos uma nova espécie de religioso, os evangélicos conservadores. Alguns deles estão no poder legislativo, formando a bancada da bíblia.
Mas se a gente pensar racionalmente, fica realmente difícil dissociar política de religião, porque tudo é política. Futebol é política, música é política, jornalismo é política. Porém, uma coisa é fazer política, outra coisa é exercer poder. Fazer política é debater ideias com a sociedade em geral, através de representantes, como padres e pastores, que não ocupam cargos públicos, mas tem representatividade, assim como sindicalistas, artistas famosos e etc. Exercer poder é negar que uma menina de onze anos de idade, que foi estuprada e engravidou, faça um aborto, porque considera o aborto imoral e anticristão. Exercer poder é normalizar a violência contra homossexuais, pois eles são considerados impuros, e estabelecer que a única formatação possível de uma família é entre um homem e uma mulher. Exercer poder é vincular religiões de origens africanas ao maligno, demonizando-as.
Já passou da hora da religião ser separada da política, no sentido de exercer esse poder castrador e vil. Também já passou da hora de políticos que se amparam na religião para conseguir popularidade serem extirpados da vida pública! Eu me recuso a pactuar com um governo que se faz valer de slogans fascistas e que colocam Deus acima de todos. Deus este, pelo qual não tenho nenhuma simpatia, afinal, é um deus que valida a violência e a intolerância. Não sou contra a religiosidade e espiritualidade de cada individuo, muito pelo contrário. Acho louvável. Mas, dada a pluralidade de crenças e divindades, há de se ter respeito e tolerância com as diferente religiosidades. Assim, cenas lamentáveis como as vistas em Aparecida poderiam ser evitadas. Já as religiões como instituições, que visam ter influência e poder perante o estado, que não pagam impostos, lucram quantias obscenas e querem fazer parte do governo, essas devem ser combatidas. O exemplo está diante de nós. Um governo guiado pela ré-ligião, assim mesmo, de marcha ré. Um governo que, se permanecer no poder, daqui pra frente, vai ser só pra trás. E, como acabamos de ver, o passado com a religião no comando não foi nada bom para a humanidade.