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História

A heroína de dois mundo.

Texto escrito para o site. Março de 2023.

Foi um barulho qualquer que a despertou do sono. O sono inconfundivelmente leve que toda mãe tem, sempre atenta a qualquer possível ameaça contra seu bebê. Para ela aquele sono ainda era uma novidade. Havia dado à luz seu primeiro filho apenas doze dias atrás. Levantou da cama num sobressalto e olhou para o seu filho, que dormia tranquilo. Mais uma vez um barulho, e um relincho de cavalo, vindos de fora da casa. Ela olha pela janela e vê cinco homens se aproximando sorrateiramente. A casa é pequena. Ela olha por outras janelas, com cuidado para não ser vista. A pequena casa está parcialmente cercada de soldados imperiais. Justamente o fundo da casa, onde seu cavalo está amarrado, não está sob os olhos de nenhum soldado, que se concentram em meio círculo avançando pela frente. Habilmente ela pega a criança, embala junto a si num pedaço de tecido, mantendo-a segura em seu braço esquerdo. Não mão direita uma espingarda engatilhada, pronta para atirar. Com rapidez impressionante, ela sai pela porta dos fundos, monta em seu cavalo e foge a galope mata adentro. Quando os soldados imperiais se dão conta da fuga, iniciam a perseguição. Por algumas horas, ela cavalga em alta velocidade, atirando em quem quer que ouse se aproximar dela, sempre segurando seu filho junto ao corpo. Finalmente ela consegue despistar os soldados. E permanece por 4 dias na mata, escondida, até conseguir se juntar a seus aliados e reencontrar o seu grande amor.

Por incrível que pareça, o relato acima, mesmo sendo de uma coragem e bravura impressionantes, não foi o ato mais heroico de Anita Garibaldi. Ao longo de sua vida de batalhas, ela mostrou-se uma verdadeira heroína, uma mulher destemida, quase invencível. Quase não. Ela foi invencível sim! Porque homem nenhum conseguiu derrotá-la, ou mantê-la prisioneira por muito tempo.

Ela nasceu Ana Maria de Jesus Ribeiro, no dia 30 de agosto de 1821. Seus pais eram portugueses da região dos Açores. A primeira metade do século XIX foi particularmente dura para os portugueses, que viviam uma crise econômica grave, enquanto a política vivia uma fase conturbada. Os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina receberam muitos portugueses que imigraram para o novo mundo em busca de uma vida melhor. Anita foi a terceira de 10 filhos do casal Bento Ribeiro da Silva e Maria Antonia de Jesus Antunes, todos nascidos em Laguna, Santa Catarina. A pequena Anita era muito ligada ao pai, mesmo ele não parando muito em casa, já que era tropeiro e vivia de conduzir gado do Rio Grande do Sul ao Paraná. Quando tinha 12 para 13 anos de idade, ela ficou órfã de pai, cuja morte não se tem registro exato. A partir de então, a condição financeira da família caiu muito. A mãe de Anita mudou-se com os 10 filhos para o centro de Laguna em busca de trabalho. Lá recebiam frequentemente a visita de Antonio da Silva Ribeiro, irmão de Bento. Anita passou a admirar seu tio Antonio, sempre bem apessoado e se dizendo republicano, a favor da liberdade.

Mas foi justamente o tio Antonio que sugeriu que Anita, aos 14 anos de idade, se casasse com Manuel Duarte de Aguiar, um jovem sapateiro. O casamento foi arranjado para aliviar o custo de vida de dona Maria Antonia, que não dava conta de dar de comer a tantos filhos. Há registros de cartas de Anita a seu tio dizendo que seu casamento era uma farsa, não havia qualquer empatia entre o casal, tanto que nunca tiveram filhos. Pra piorar, seu marido era afeito a tomar uns tragos e se declarava monarquista. Anita se casou em agosto de 1835. Um mês depois de seu casamento, a Revolução Farroupilha foi deflagrada. Dois anos depois, em 1838, Manuel Duarte de Aguiar, alistou-se no exército imperial, para lutar contra os farrapos, e abandonou Anita em Laguna. Nessa época, Anita e seu tio Antonio continuavam muito próximos, e agora tinham em comum os ideais republicanos e o apoio à revolução farroupilha.

O italiano Giuseppe Garibaldi era um revolucionário republicano conhecido na Europa, tinha sido condenado à morte em sua terra natal e já tinha percorrido boa parte do mundo, até acabar no Rio Grande do Sul, se apresentando para ser recrutado pelo exército farroupilha. Por seus conhecimentos como navegante, Garibaldi recebeu de Bento Gonçalves uma carta de corso e, em 1839, após sequestrar um navio do império brasileiro, comandou o ataque a Laguna, para que os gaúchos tivessem um bom lugar para estabelecer como porto marítimo. Após a cidade ter sido facilmente tomada, já que a população apoiava os farrapos, da proa do navio Garibaldi observava a cidade com uma luneta. Foi quando viu, por acaso, Anita andando por uma das ruas e ficou encantado. Um dia depois, durante uma reunião dos republicanos em Laguna, Garibaldi finalmente encontra aquela garota que vira através de sua luneta. A reunião aconteceu justamente na casa de Antonio Ribeiro, tio de Anita. Na ocasião, ela tinha 18 anos e Garibaldi 32. Foi uma paixão mútua e imediata.

Com Garibaldi, Anita se juntou de vez ao exército farroupilha. A batalha naval de Laguna, em novembro de 1839, foi onde Anita brilhou como guerreira pela primeira vez. Além de participar de alguns confrontos, sua bravura foi determinante para a sobrevivências das tropas de Garibaldi. Num pequeno barco, Anita ia e voltava da terra firme, buscando armas e munições e levando para os navios dos farrapos. Ela fez tal travessia mais de 20 vezes, em meio ao fogo cruzado. Já em janeiro de 1840, na batalha de Curitibanos (SC), o exército farroupilha se deu mal e teve que recuar. Anita acabou sendo feita prisioneira dos imperiais. Mas não por muito tempo. Em alguns dias, conseguiu convencer o comandante daquela tropa imperial a permitir que ela andasse pelo campo de batalha para procurar o corpo de seu marido, pois corria o boato que Garibaldi tinha morrido em combate. Anita sentia que Garibaldi estava vivo, mas se aproveitou do boato para realizar uma fuga impressionante. Uma vez livre no campo, apanhou um cavalo e disparou rumo ao rio Canoas. Atravessou o rio a nado, um rio de margens largas, cheio de pedras e de correnteza forte, um rio muito perigoso para se nadar. Mas ela conseguiu! Atravessou o rio e chegou ao Rio Grande do Sul, em um dos acampamentos dos farrapos onde, é claro, reencontrou Garibaldi!

Ainda em 1840, no dia 16 de setembro, nasce Menotti Garibaldi, o primeiro filho de Anita e Giuseppe. Doze dias depois, Anita se recuperava do parto num rancho no município de Mostardas (RS), enquanto Garibaldi estava reunido num acampamento perto dali com os líderes republicanos do Rio Grande do Sul. Foi quando aconteceu a incrível fuga a cavalo de Anita com seu bebê recém-nascido. Depois do ataque a Anita e das intermináveis reuniões com os republicanos, que sempre acabavam em discórdia, Garibaldi começava a perceber que a república riograndense não iria muito longe, tantos eram os conflitos internos e as dificuldades de recursos. Pensando no futuro de seu filho e de Anita, ela pede baixa do exército farroupilha. Bento Gonçalves o dispensa demonstrando gratidão, e Garibaldi, Anita e Menotti se mudam para Montevidéu, no Uruguai, em 1841. Lá se casaram oficialmente e tiveram mais 3 filhos. Em 1848 Garibaldi resolve voltar para a Itália.

Até aquela época, a Itália não era um reino unificado. Na verdade, a história política da Itália, tal qual a maioria dos países europeus, é uma baita confusão. Uma terra que já passou pelas mãos de vários reinos e povos, e era dividida em vários pequenos reinados.. Naquela época, pós napoleônica, a Itália vivia sob o trono do Papa Pio IX em Roma, já Piemonte, norte da Itália, era um reino à parte, e a região sul, da Sicília, vivia em eterno conflito. Porém, em toda a parte, crescia no povo italiano um sentimento nacionalista e o desejo por uma unificação, muito dessas ideias tinha inspiração nas novas repúblicas das Américas. É para esse vespeiro que Garibaldi resolve voltar com a sua família, para ajudar a lutar pela unificação e pela república da Itália. E não é que, com a ajuda de Garibaldi e Anita, em fevereiro de 1849 o papa Pio IX é deposto e é proclamada a República de Roma? Ainda tinha muita luta pela frente, mas aquele foi o pontapé inicial para a unificação da Itália, que aconteceria anos depois. Mas acontece que, enquanto a república era proclamada em Roma, o rei de Piemonte mete os pés pelas mãos e, num péssimo timing, declara guerra ao reino da Áustria. Enquanto os austríacos invadem o norte da Itália, os franceses aproveitam para avançar também e tirar uma casquinha, se dizendo defensores do papa que fora deposto. Por fim, depois de muitas batalhas contra os franceses e austríacos, as tropas comandadas por Garibaldi são expulsas de Roma, a república é desfeita e os italianos republicanos tem que meter sebo nas canelas e fugir.

Claro que Anita esteve o tempo todo batalhando ao lado de Garibaldi. Mesmo grávida. Em julho de 1849, Anita estava grávida de seu quinto filho. Durante a fuga, rumando para San Marino, ela adoeceu. Foi diagnosticada com febre tifoide. No dia 4 de agosto de 1849, Anita Garibaldi, que nunca fora vencida por homem nenhum, sucumbiu à febre e acabou morrendo numa fazendo próxima a cidade de Ravena, nordeste da Itália. Até hoje Anita Garibaldi simboliza a liberdade e a luta por ideais de justiça e igualdade. No centro de Roma, próximo de onde o corpo de Anita está sepultado, se levanta um belo monumento: uma estátua de Anita Garibaldi montada em seu cavalo, bebê numa mão, espingarda na outra, retratando a cena que abriu este texto, e que expressa tão bem sua mais justa alcunha: A Heroína de Dois Mundos.

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