Categorias
Ficção

O SEBO

Eu não me considero um colecionador de discos. Tampouco sou um aficionado. O termo que prefiro para me definir é “apaixonado” Sou apaixonado por discos. E quando eu digo disco, entenda que eu estou falando do vinil, daquele disco grande, com uma bela capa, que você põe numa vitrola e, enquanto ele gira, você coloca a agulha em contato com os sulcos. Primeiro vem aquele chiado e depois entra a canção. Como alguém pode gostar de ouvir Wouldn’t It Be Nice, dos Beach Boys, sem aquele chiado delicioso antes da introdução?

Pois bem, sendo um apaixonado, e não um colecionador, eu não compro qualquer disco. Compro somente se for um disco que eu gosto muito. E sempre tenho uma wishlist na cabeça, alguns títulos raros, que eu sonho em ter um dia na minha discoteca. Essa lista de discos mais desejáveis varia muito de tempos em tempos, até porque, alguns desses discos a gente vai achando pelos caminhos da vida. O Tommy, do The Who, por exemplo, já esteve muito presente nesta lista, mas saiu quando eu passei uns dias em Londrina e o adquiri num sebo de lá. Já o Raw Power, do Iggy Pop & The Stooges ou o It’s Alive, dos Ramones, são um desejo constante que ainda não consegui realizar. Um disco que ganhou força de uns tempos para cá nesta minha lista foi o Velvet Underground and Nico, o clássico primeiro disco da banda de Lou Reed, com a capa conceitual de Andy Warhol, aquela icônica banana com um fundo branco. Acho que este é o verdadeiro início desta história. Quando eu comecei a desejar este disco.

Eu sempre voltei do trabalho para casa a pé. É uma caminhada longa, mas andar me relaxa. Sempre faço o mesmo trajeto, sem fazer paradas nem nada assim. Com exceção de um dia. Um dia que mudou minha vida.

Fazia eu o mesmo trajeto de sempre. Em determinado trecho, sempre passava por um prédio muito antigo com várias portas, sempre fechadas. Devia ser um desses prédios comerciais com várias lojinhas, mas que deve ter sido desativado e está abandonado, fechado há anos. As paredes estão podres, o reboco todo descascado, pichações e pedaços de cartazes colados e arrancados várias vezes…Mas naquele dia, uma das portas deste prédio estava aberta. Uma luz fraca iluminava o interior. Olhei para dentro com curiosidade e acabei parando. Era um sebo. Algumas prateleiras nas paredes continham pilhas e pilhas de discos e apenas uma pequena prateleira com vários livros amontoados, aparentemente, sem organização nenhuma. Num pequeno balcão, um senhor de muita idade lia um livro muito compenetrado, seus lábios se mexiam, como se ele estivesse lendo em voz alta, mas não fazia nenhum som. Vez por outra, balbuciava alguma palavra. Ao lado dele, uma dessas vitrolinhas que viram uma maleta quando fechadas, tocava um disco do Serge Gainsbourg. Da porta, pensei com uma excitação exagerada: “É aqui que eu vou achar o meu Velvet Underground!”. Dei um passo a frente e entrei no sebo, já arregaçando as mangas para começar a mexer nos discos.

Olhei para o senhor no balcão e disse: “Boa noite. Ainda está aberto? Posso dar uma olhada nos discos?”. O velho apenas ergueu os olhos, fixando-os em mim e fez um sinal afirmativo com a cabeça. E voltou para a sua leitura. De cara percebi que perderia um tempão ali, mas vi que tinha potencial A desorganização era tremenda. No primeiro punhado de discos que peguei passei por dois discos do Nelson Ned, um do Tchaikovsky, o Qualquer Coisa, do Caetano, o Killers, do Iron Maiden, Kick Out The Jams, do MC5…entre outros. Ou seja, nada de separação por estilo ou ordem alfabética. Mas tinha muita coisa rara e resolvi me entregar à busca.

Fiquei mais de uma hora fuçando naqueles discos. Meu nariz já começava a escorrer, de tanto poeira que havia no lugar. Mas, é claro que, à medida que eu ia mexendo nos discos, separava um ou outro para decidir depois se compraria ou não, dependendo do valor. Como o lugar era pequeno, depois de uma hora e meia, já tinha visto quase tudo. Faltava apenas uma pilha de discos que estava no chão, embaixo da prateleira dos livros amontoados. Me sentei no chão e comecei a ver aqueles discos. No meio daquela pilha, finalmente achei o que procurava. Aquela capa branca como uma banana estampada e a assinatura do Andy Warhol. Fiquei ali sentado sorrindo olhando para aquela capa. Fui interrompido pelo velho que disse: “Quer colocar esse para tocar?” “Claro!” respondi me levantando e entregando o disco a ele. Vem aquele chiado delicioso e começa a doce guitarra dedilhada de Sunday Morning. Voltei a me agachar para arrumar os discos que tinha espalhado ali no chão. Enquanto recolhia os discos, olhei de relance para a prateleira e vi um livro muito familiar. Era o  Escaravelho do Diabo, uma história policial de uma série de livros infanto juvenis. Foi um dos primeiros livros que li quando criança e adorei o tom de mistério. Tomei gosto pela leitura com aquele livro.

A edição que estava ali era muito antiga, com as páginas meio amareladas. O velho disse, sem tirar os olhos do livro que lia: “Este aí devia virar filme, é uma história muito boa.” “Concordo com o senhor. Sempre pensei que essa história daria uma ótimo filme.”. Me diverti com a coincidência de eu e aquele senhor termos a mesma opinião sobre um livro juvenil. Comecei a observar os outros livros daquela prateleira e me deparei com vários títulos conhecidos meus. Para Viver um Grande Amor, do Vinícius de Moraes, a autobiografia do Johnny Cash… a cada título conhecido, aumentava minha perplexidade com tamanha coincidência. Até que me deparei com O Romance Morreu, uma coletânea de crônicas do Rubem Fonseca. Um livro que eu ganhei de presente de uma amiga muito especial. Peguei o exemplar e o abri. Logo ali, na primeira página, estava a dedicatória que ela escrevera para mim. Com o susto, deixei o livro cair. O velho, sem tirar os olhos de sua leitura resmungou: “Cuidado, garoto.  Esses livros são importantes para mim.”. Tentei me desculpar, mas minha voz não saiu. Já era Venus in Furs que tocava aumentando minha confusão com aquela microfonia ininterrupta. Continuei olhando atônito para aquela prateleira. Até que vi um livro sem título nenhum. Entre tantos livros conhecidos, um que não me parecia nada familiar chamou minha atenção. Abri e vi que, na verdade, era um álbum de fotos. Fotos minhas.  Minha infância. Vi a foto onde eu e meu primo, então com seis ou sete anos, no sítio do meu pai cobertos de lama subindo num pé de manga. Também tinha fotos da minha adolescência, a turma do colégio fazendo churrasco. Uma foto minha tocando bateria numa das minhas primeiras aulas, aos 14 anos. Eu com alguns amigos nas escadas da faculdade. Fotos de garotas por quem eu fui apaixonado, mas nunca consegui me declarar.

“Onde o senhor conseguiu essas fotos?” perguntei, tentando esconder um misto de pavor e braveza que me mastigava por dentro. Ele me olhou com curiosidade e disse: “Isso é meu. É o meu legado. Tudo aqui é o meu legado!” “O que o senhor quer dizer com isso? Como assim é o seu legado?” “Tudo que eu tenho está aqui. Não só o material. Meus sentimentos, meus medos, meus sonhos…está tudo aqui. Entre discos e livros. Faz parte das escolhas que eu tomei ao longo da minha vida.” “Que escolhas?” “Eu deixei de acreditar em muita coisa. No amor das pessoas, na fraternidade. Desisti de viver em sociedade porque achava os padrões sociais todos errados. Fui me afastando das pessoas. Aluguei essa sala aqui há muitos anos e passei a guardar os discos e livros que comprava. Também a passar horas aqui lendo e ouvindo música.. Claro que eu saía para ir ao cinema, ou alguma coisa assim, mas acabava sempre voltando…até que acabei me mudando para cá.” “E o senhor não conversa com ninguém? Não vem muita gente aqui para comprar discos? O senhor tem ótimos títulos…coisas raras do Bowie, Grand Funk Railroad…” “E quem disse que eu quero vender meus discos?” “Mas…então, por quê o senhor me deixou entrar e revirar tudo?” “Porque eu vi sua tatuagem.” “Minha tatuagem…o que tem ela?” é uma tatuagem que tenho no antebraço, o bumbo do Sgt. Pepper’s, dos Beatles. Ele arregaçou a manga da blusa de lã que vestia e me mostrou uma tatuagem idêntica. Fiquei paralisado, perplexo.

“Você já ouviu falar que, quando você toma uma decisão importante, um pedaço de você se solta? Como se nascesse ali um fantasma de você mesmo que toma o rumo oposto do que você decidiu?” “Não…” Aquilo estava começando a ficar assustador. “Bom, você vai ouvir falar disso logo…eu li essa teoria em algum livro por aí…Bom, o fato é que eu não sei se você é o fantasma ou se sou eu.”. Ao dizer isso ele sorriu com ironia, e All Tomorrow Parties que tocava na vitrola chegava ao fim, encerrando o lado A do disco. Ficamos ali naquele silêncio olhando um para o outro por alguns segundos. Calmamente, ele se vira de lado, troca o disco de lado e coloca a agulha. Começa a tocar Heroin. Penso se devo ir embora, olho para a porta. E o velho se volta para mim e começa a dizer:

“Olhando para trás, eu percebo que eu não quis me adaptar. Mas não sei te dizer exatamente onde eu errei. Se é que eu errei. Não sei em que ponto eu desisti de ter alguma meta. Na verdade, eu só não quis me sujeitar a padrões, eu quis fugir de tudo… eu quis fugir de tudo e de todos. Você pode me perguntar se, com isso tudo, eu consigo ser feliz. Honestamente, eu consigo sim. Eu gosto de ler, gosto de boa música, gosto de café sem açúcar, gosto de ter uma vizinhança tranquila, gosto de andar de madrugada e passar por lugares que me tragam memórias…” Ele faz uma pausa e fica olhando para o teto, como se procurasse as palavras nas manchas de bolor em volta da lâmpada. Neste momento, começa a tocar I’ll Be Your Mirror. Ele volta a olhar para mim e diz: “Agora, se tudo poderia ser diferente, se eu poderia ser mais feliz…isso eu nunca vou saber. Talvez, com o tempo, você descubra e passe aqui para me visitar e me dizer como as coisas aconteceram para você.” Mais um sorriso escorrendo ironia. “Agora vamos ficar em silêncio, porque o final deste disco é maravilhoso.”.

Eu volto a me sentar no chão e vou folheando o álbum de fotografia. Passo por boa parte da minha vida. Enquanto isso, The Black Angel’s Death Song e European Son rolam na vitrola num volume mais alto que o normal. Quando o disco acaba, o velho volta a colocar o disco do Serge Gainsbourg que rolava antes e volta a se concentrar na sua leitura. Sentado, consigo ver a capa do livro que ele está lendo. É o On The Road, do Kerouac. Sorrio pensando: “Será que eu vou ficar velho e continuar relendo esse livro pela milésima vez?”. Enquanto penso nisso, fecho o álbum de fotografias. Quando vou coloca-lo no lugar, sai do meio dos livros um rato. Eu me assusto, me levanto num impulso e, cambaleando, dou três passos para trás e estou na calçada, fora da loja. O velho se levanta, fecha a vitrola, apaga a luz, fecha a porta e se vira para mim dizendo “Boa noite.” Com uma naturalidade absurda e sai andando. Fico atônito ali parado. Até que me recomponho e vou embora.

Nos dias seguintes, passo pelo mesmo lugar e a porta está sempre fechada. Já parei, bati na porta, tentei achar alguém que more ali e que tenha visto aquela porta aberta… e nada. Com o tempo, tento concluir que aquilo foi um sonho, um devaneio maluco depois de um dia estressante no trabalho… qualquer coisa assim.

Alguns anos depois disso, eu já tinha mudado de emprego, feito faculdade e trabalhava numa empresa bacana. Atualmente tenho um bom cargo, com um bom salário. Não trabalho na área que estudei na faculdade, mas não me importo com isso. Ganho um bom dinheiro e me divirto. Moro sozinho num apartamento no centro da cidade, tenho meus discos, meus livros… Quando voltava para casa, passei pela praça que fica a duas quadras do prédio onde moro. Ali, um cara meio hippie tinha um pano no chão e vendia algumas pulseiras de miçanga e um punhado de discos velhos. Entre eles estava o Velvet Underground and Nico. Olhei para o disco e senti meu corpo gelar. O cara me falou: “Legal este disco do Velvet, hein…te vendo por dez conto.”. Imediatamente, olho para o braço do rapaz procurando alguma tatuagem. Não tem nenhuma. Sinto-me aliviado. Resolvo comprar o disco.

Após tanto tempo procurando esse disco, resolvo comemorar a aquisição. Entro num bar, muito cheio por ser um fim de tarde de muito calor. Enquanto estou encostado no balcão tomando meu chopp e lendo a contra capa do disco, sinto alguém atrás de mim, me observando. Meu corpo gela de novo… é ele. Aliás… eu. Me viro bruscamente e é uma garota. Me olhando curiosa, com uma bolsa vermelha grande pendurada no ombro. Ela se desculpa. “Foi mal. Fiquei curiosa. Nunca vi esse disco antes.” “Velvet Underground. Não conhece?” “Não. É banda nova?” Sorrio aliviado e, levemente encantado pela garota inocente na minha frente me perguntando sobre um dos discos mais importantes da história do rock n’ roll. “Velvet é tipo o pai dos Strokes.” “Ah, legal! Strokes eu conheço. Acho muito bom” “Eu acho que preciso de mais um chopp. Você quer?” “Claro.”

Agora está amanhecendo. Vejo a bolsa vermelha dela na mesa e ela nua dormindo na minha cama. Enquanto vou fazer café, coloco o Velvet Underground para tocar. Olho de relance pela janela e vejo o velho da loja parado na esquina. Ele aponta para mim sorrindo, me faz um sinal de positivo. Joga a ponta do cigarro que fumava no chão, vira as costas e sai andando até sumir no horizonte enquanto na vitrola toca Sunday Morning.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *