Texto publicado em outubro de 2021 no Diário do Sudoeste.
Não há nada mais certo no mundo do que a velha, porém inoxidável, afirmação que toda mãe diz para seu filho em algum momento da vida: “Você não é todo mundo!”. Isso reforça a ideia de cada um de nós, seres humanos, somos únicos, e não devemos nos comparar com as outras pessoas, ou querer imitá-las, mas sim fazer as coisas da melhor maneira possível, por nossos próprios meios. Se por um lado isso parece desafiador, por outro é um alívio. Imagina se você tivesse que se comparar a Alexandre, o Grande, ou Mozart, ou Santos Dumont… enfim, homens que realizaram coisas incríveis, que parecem muito distante do alcance do homem comum. Claro, que esses e outros exemplos de seres humanos que marcaram a história não devem ser tidos como um padrão a ser alcançado, mas podem servir de inspiração para que se pense fora da caixa. Assim como fez um jovem húngaro, que ouvia os conselhos de sua mãe e levou bem a sério esse negócio de pensar fora da caixa.
Ehrich Weisz nasceu em Budapeste no dia 24 de março de 1874. Ainda criança se mudou com a família para os Estados Unidos em busca de uma vida melhor. Depois de passar por algumas cidades pequenas, a família se estabeleceu em Nova Iorque. O pai de Ehrich era um rabino tido como muito antiquado e conservador, mas era um homem muito correto e devotado a sua esposa. O garoto cresceu sob a imagem do pai, mas se encantou pelas artes circenses, o entretenimento mais barato que uma criança pobre poderia ter acesso naquela época. Começou a elaborar números como trapezista e malabarista com seu irmão, Theodore, e fazer pequenas apresentações na rua. O jovem Ehrich era muito dedicado, aos 16 anos corria aproximadamente 19 quilômetros por dia, tinha um corpo atlético e forte. E se manteve assim por toda a sua vida adulta, inclusive sem se entregar a vícios como o álcool e cigarro.
Por volta de 1890, tanto nos Estados Unidos como na Europa, eram muito comuns os circos de aberrações, onde pessoas com deformidades eram apresentadas ao público. Ehrich e Theodore passaram a fazer parte das atrações desses circos, e já incluíam em suas apresentações alguns números de mágica com cartas e etc. Ehrich achava que seu nome não era bem compreendido pelos norte americanos e resolveu arrumar um nome mais simples. Inspirado num famoso mágico francês da época, Robert Houdin, ele passou a se chamar Harry Houdini, apresentando-se então com Theodore como os Irmãos Houdini. Nessa época, o pai de Harry foi acometido de um terrível câncer e faleceu. No leito de morte, ele fez Harry prometer que não deixaria faltar nada a Cecilia, sua esposa e mãe de Harry. O rapaz já via a mãe como uma santa, com a morte do pai, se tornou obcecado por melhorar de vida. Olhando para a pobreza em que vivia, ele só pensava em uma coisa: escapar.
Se apresentando ao lado de trupes circenses itinerantes, Harry conheceu Beatrice Raymond, uma cantora alemã, jovem e bonita. Após 3 semanas de namoro, o casal já se casou e passou a se apresentar juntos, como o Casal Houdini, onde Beatrice, que ficou conhecida como Bess Houdini era assistente de palco. Harry almejava poder deixar a rotina massacrante de viagens, pouca infra estrutura e pouco dinheiro dos circos para se apresentar nos palcos dos teatros de vaudeville, os teatros populares da época, que faziam enorme sucesso. E foi com um número de ilusionismo chamado Metamorfose que ele conseguiu esse upgrade. O número consistia em ele entrar algemado dentro de um baú trancado a cadeado e um minuto depois aparecer livre, com o baú ainda fechado. E quando aberto, quem aparecia lá dentro era Bess com as mesmas algemas que estavam em Harry. O sucesso desse número foi estrondoso. O Casal Houdini passou a viajar por todo o país. Harry passou a elaborar novos números, cada vez mais complicados. Era acorrentado e amarrado, trancado em caixas… e sempre conseguia escapar. Agora se apresentava apenas como Houdini, O Rei das Algemas. Depois de 14 meses de sucesso absoluto e muito dinheiro nos Estados Unidos, Houdini partiu para uma turnê na Europa, onde iria escapar de vez da pobreza.
Na Europa Harry se tornou um mito. Ele sabia como chamar a atenção. Quando chegava a uma cidade, a primeira coisa que fazia era pedir para ser preso na cadeia local no mesmo dia em que tinha sua apresentação marcada. E ele fazia questão de ser preso em frente ao maior número de pessoas possível, e só de cueca, para provar que não levava ferramenta nenhuma. Pouco tempo depois ele escapava e aparecia livre pela rua. Além disso, tinha muito apelo popular, ele dialogava bem com os proletários, que metaforicamente se viam aprisionados ao trabalho e à pobreza, e viam em Harry uma inspiração para também conseguir escapar daquela realidade. Assim, seus shows estavam sempre lotados. Depois de 5 anos Harry estava cansado e sentindo muita falta de sua mãe. Já com muito dinheiro no bolso, ele resolveu voltar para os Estados Unidos. De volta a Nova Iorque, ele comprou uma casa enorme para a sua mãe e passou a caçar novos desafios.
Harry passou a anunciar que procurava pessoas que criassem qualquer dispositivo capaz de prendê-lo. E ele sempre conseguia vencer. Caixas, correntes, um envelope, uma bola de couro costurada, escrivaninhas e até mesmo um piano de cauda que teve seu tampo pregado com Harry dentro. E ele escapou. Além do mais, Houdini envolvia o público, convidando as pessoas a subirem ao palco para conferir suas amarras e cadeados, verificando que não havia armação. O que só fazia aumentar o seu mito. Mas ainda não era o suficiente. Cada vez mais parecia que Houdini só não conseguiria escapar da morte. Foi quando uma cervejaria o desafiou a ser trancado num grande barril de chopp cheio de água, com as mãos algemadas, claro. Ele topou. E conseguiu escapar de novo. Esse truque se tornou um de seus grandes sucessos. Ele entrava no barril algemado, o barril era lacrado com cadeado. Um minuto depois ele aparecia todo encharcado e o barril ali do lado, com os cadeados intocados. Houdini passou a aceitar desafios cada vez maiores, e agora ao ar livre. Um de seus números mais famosos foi quando ele foi preso num caixote de madeira, sempre algemado, o caixote tinha sua tampa pregada e ainda presa por cadeados. A caixa foi atirada no rio. Ela afundou rapidamente. Após angustiantes dez minutos, Houdini vem à tona. A caixa é içada e está fechada. Quando aberta, lá estão as algemas. Agora, o céu era o limite.
Nova Iorque nos anos 1920 vivia em pleno crescimento. O fim da Primeira Guerra Mundial deu fôlego para que a economia crescesse. As ruas da cidade estavam cheias de guindastes que içavam vigas de concreto para a construção de prédios. Um desafio a altura de Houdini. Ele então era pendurado por tais guindastes pelos pés, ficando de cabeça para baixo e amarrado em uma camisa de força. E o danado conseguia se livrar da camisa de força na frente de todos, atirando a peça para a multidão e descendo livremente! Porém, quando nada parecia poder matá-lo, ironicamente a morte veio justamente de dentro para fora. No dia 30 de outubro de 1926 Houdini foi internado com dores dilacerantes no abdômen. Era uma apendicite supurada que o consumia já havia alguns dias. Seus números sempre exigiram dele uma forte resistência a dor, pois ele invariavelmente deslocava o ombro, quebrava costelas e etc. Pois ele vinha suportando essa dor abdominal por dias, para não deixar de cumprir seus compromissos. Quando foi internado, já havia uma infecção generalizada e nada que pudesse ser feito. No dia 31 de outubro de 1926 Harry Houdini foi vencido pela morte. Houdini conseguiu escapar da pobreza, do anonimato e entrou pro rol dos seres humanos mais incríveis do mundo. É até hoje considerado o maior ilusionista que já existiu. Como provavelmente a mãe dele disse em algum momento da infância, ele não era todo mundo. Você também não é todo mundo. Mas pode se inspirar no Houdini, que mostrou que sempre dá pra escapar. O segredo é sempre enfrentar para poder escapar, mas nunca fugir.