Texto publicado no Diário do Sudoeste em outubro de 2021.
Quando reacenderam, literalmente, a discussão sobre o valor dos bandeirantes para a nossa história, ao botarem fogo na estátua do Borba Gato, fiquei pensando bastante a respeito disso. É curioso que num rompante revisionista, algumas pessoas queiram eliminar monumentos que celebram a história. Em julho do ano passado manifestantes derrubaram uma estátua de Cristóvão Colombo em Baltimore, nos Estados Unidos. O ato fez parte dos protestos antirracistas que varreram o mundo depois do assassinato de George Floyd. Realmente as expedições europeias contra todo o continente americano foram truculentas, vidas humanas foram cruelmente aniquiladas e escravizadas. Mas foram feitos históricos. Imagine você, mais de 500 anos atrás, sem tecnologia nenhuma, sem saber o que iriam encontrar, os caras cruzaram um oceano inteiro, desenvolveram a astronomia, as embarcações… e hoje estamos aqui por causa desse pessoal.
Não quero me alongar nessa discussão, que eu considero super válida, aliás. Muito legal que rolem cada vez mais reflexões a respeito. Mas eu fiquei pensando muito sobre o quanto a nossa sociedade atual gosta e explora muito bem na cultura pop um bom anti herói. Em quantos filmes ou séries você já não torceu pro bandido? Vou te dar um exemplo. Nos filmes da franquia Piratas do Caribe, todo mundo gosta do Jack Sparrow. Mas ele é um pirata. E você sabe que os piratas eram bandidos inescrupulosos, que saqueavam, roubavam, estupravam, sem a menor dor na consciência. Entretanto, a cultura pop está repleta de filmes, livros, séries, histórias em quadrinhos, envolvendo os piratas, e nem sempre os colocando como vilões da história.
Na verdade, é sobre isso que eu quero falar hoje: Piratas! A maioria das pessoas acredita que a pirataria aconteceu entre o fim do século XVI e o começo do século XVIII, nas rotas entre a Europa e América Central. Bom, a pirataria é uma prática muito mais antiga. Já acontecia em vários pontos do planeta. Desde que a humanidade se dividiu em diferentes reinos e descobriu a navegação, de imediato já apareceram alguns malandros em barcos querendo roubar outras embarcações. Mas, de fato, a era de ouro dos piratas é esse período das grandes navegações e colonização do Novo Mundo. E isso inclui o Brasil!
Todo o litoral brasileiro foi palco de muita atividade de piratas e corsários. E esse é um fato pouco abordado nas escolas, mas que deveria ser muito explorado. Inquestionavelmente, a pirataria obrigou a coroa portuguesa a acelerar a colonização do Brasil. Até 1550 o Brasil ficou abandonado pelos portugueses, focados nos caminhos para a Índia. Ignorando o Tratado de Tordesilhas, os franceses ficaram sabendo de um novo continente descoberto e foram explorá-lo. Firmaram boas relações com os nativos e se fartaram de tanto Pau Brasil! O trânsito francês chamou a atenção de piratas ingleses, holandeses e até de outros franceses, que começaram a navegar pela costa do Brasil. Os portugueses se viram obrigados a enviar expedições militares para proteger a costa das terras recém descobertas. É por isso que tantas cidades litorâneas do país tem fortificações construídas, das quais as cidades se desenvolveram em volta.
Com a formatação da União Ibérica, que colocou Portugal e Espanha sob a mesma coroa entre 1580 e 1640, a ação de piratas se intensificou, já que Portugal sempre foi neutro, mas o reino espanhol era inimigo declarado da Inglaterra. Sendo assim, os corsários, ou seja, piratas com autorização de um reino para atacar navios de outros reinos, ingleses avançaram sobre a costa do Brasil com ferocidade. Em 1591, por exemplo, 5 corsários capitaneados pelo inglês Thomas Cavendish passaram meses percorrendo a costa do Brasil, do Maranhão até Santa Catarina saqueando embarcações, que transportavam açúcar e Pau Brasil, e invadindo vilarejos. Outra ação histórica de um pirata britânico foi o ataque a Recife em 1595. Sob o comando de James Lancaster, uma frota de 8 corsários, atacou várias naus portuguesas, as incorporou, formando uma frota com 30 embarcações, e invadiu Recife. Os ingleses dominaram o forte de São Jorge e permaneceram ali por um mês, saqueando toda a cidade. Quando partiram, a frota de 30 embarcações saiu abarrotada de madeira, açúcar e toda a sorte de produtos que puderam carregar. Foi, sem exagero, o maior saque de corsários ingleses já registrado.
Porém o ataque mais violento de piratas em solo brasileiro aconteceu em 1687 na Ilha de Santa Catarina, a atual cidade de Florianópolis. A região estava povoada desde 1673 por paulistas. Acontece que, com o fim da União Ibérica em 1640, Portugal se apressou em povoar, para proteger dos espanhóis, a costa sul do Brasil, que pelo Tratado de Tordesilhas, pertencia a Espanha. Por isso incentivou a ida de famílias já estabelecidas em São Vicente e Piratininga (atual São Paulo) a se apoderar de terras ao sul. Em 1686 a região da ilha de Santa Catarina já era uma vila movimentada, chamada Vila do Desterro. Quando um corsário inglês apareceu na costa, voltando do Peru pelo estreito de Magalhães, os moradores da vila se sentiram ameaçados e atacaram a nau, que acabou partindo ás pressas, sem poder se abastecer de água potável e descansar. A embarcação era capitaneada pelo pirata inglês Thomas Frins.
No ano seguinte, 1687, o mesmo Thomas Frins navegava pela costa brasileira e resolveu se vingar daquele povoado que o atacara sem mais nem menos. Se aproximou da costa da Vila do Desterro e começou a atirar com seus canhões. Os moradores atacaram de volta com tiros de espingardas e canhões. A nau de Thomas Frins se afastou, como que se dando por vencida. A população da vila foi dormir se sentindo vitoriosa. Porém, no meio da madrugada, os piratas desembarcaram da nau e atacaram a vila. Mataram praticamente toda a população, antes violentando mulheres, pilharam e atearam fogo em várias casas, inclusive na igreja. Foi um verdadeiro massacre. Essa história só foi documentada cerca de 80 anos depois, por um historiador paulista chamado Pedro Taques de Almeida Pais Leme que colheu vários relatos e escreveu a história por volta de 1740.
Histórias incríveis como as contadas acima poderiam ser muito melhor exploradas. Contadas com entusiasmo e emoção, podem inspirar e incentivar jovens e crianças a conhecer mais a história do Brasil! Da mesma forma os bandeirantes também tem histórias inacreditáveis, cheias de violência e aventura. Eu não acho que deveria ter estátuas para piratas, nem mesmo para bandeirantes. Mas já que as dos bandeirantes existem, que sejam preservadas e se conte as histórias deles como realmente foram. Por mais terríveis que tenham sido seus atos, eles ajudaram a forjar a sociedade que somos hoje. E somente conhecendo profundamente quem eles foram, podemos refletir, avaliar e procurar sermos uma sociedade melhor. Derrubar uma estátua é como simplesmente fechar os olhos em negação a tudo que aconteceu.